Mário de Andrade e a espessa goma da burocracia

Os relatos da passagem de Mario de Andrade pelo Departamento de Cultura dão conta do imenso trabalho que desenvolvia em tempo integral.

Márcio Zago

Em 1935, Mário de Andrade assumiu a Diretoria de Cultura e Recreação de São Paulo, implementando uma gestão inovadora voltada ao desenvolvimento cultural, educativo e recreativo. Entre suas iniciativas estavam à criação de bibliotecas, parques infantis e espaços esportivos, além da promoção de cursos, palestras e eventos artísticos e científicos, com especial atenção aos jovens e crianças — propostas bastante arrojadas para a época. Em 1937, foi criada a Sociedade de Etnografia e Folclore, dedicada à documentação e aos estudos da cultura popular. No ano seguinte, o jornal O Atibaiense noticiou a visita de uma comitiva liderada por Mário de Andrade a Atibaia, a convite do prefeito João Batista Conti, que também era membro da Sociedade. A reportagem destacava: “A convite do Sr. João Batista Conti, prefeito municipal e membro da Sociedade de Etnografia e Folclore de São Paulo, estiveram nessa cidade durante as últimas festas o escritor e poeta prof. Mário de Andrade, diretor do Departamento de Cultura de São Paulo e presidente da referida sociedade; Sr. AntonioRubbo Muller, pesquisador social do Departamento de Cultura e Sr. Martins Braunwiers, professor de coros do Departamento e diretor do Coral Paulistano. A ilustre comitiva aqui veio apreciar, in loco, as nossas congadas, delas colhendo por processos técnicos, seus cânticos, músicas, danças e embaixadas, bem como informes dos seus trajes característicos. Com tais dados, preciosos para a comitiva, será ilustrado um trabalho da Sociedade de Etnografia relativamente às congadas do Brasil.” Infelizmente, 1938 foi o último ano de Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura. Os efeitos da ditadura Vargas se faziam sentir, e o novo prefeito de São Paulo, Prestes Maia, indicado pelo interventor Ademar de Barros, não dava prioridade à cultura, levando ao afastamento de Mário do Departamento de Cultura poucos meses após sua visita a Atibaia. Por pouco Atibaia não teria um precioso registro de sua mais importante manifestação cultural. Uma carta enviada por Mário a João Batista Conti evidencia as dificuldades enfrentadas pela comitiva para realizar essa visita, inclusive financeira:
“Caro Conti,
Escrevo-lhe hoje para fazer-lhe uma consulta, na qualidade de mestre da Sociedade de Etnografia e Folclore, da qual você é um atencioso delegado. Tendo eu transmitido a notícia da festa de Perdões na próxima semana, alguns sócios se mostraram interessados em que a Sociedade se fizesse representar, estudando in loco uma festa da qual parece não haver nada registrado. Na sessão de ontem foi feita a indicação do meu nome para dirigir uma comitiva a Perdões. Aceitei a incumbência, porém, na condição de perguntar a você maiores detalhes que pudessem favorecer a organização da viagem. Desejaria saber: Se haveria possibilidade de conseguir estadia em Atibaia mais acessível aos sócios da Sociedade de Etnografia; As eventuais despesas com automóveis para ir a Perdões; Quais os dias de festas e quais seriam os fatos a serem observados, isto é, se haveria, por exemplo, congada, caiapó, moçambique, cavalhada etc. Espero que você nos preste esta fineza, respondendo às questões em tempo suficiente para que possamos organizar a embaixada.”
Os relatos da passagem de Mario de Andrade pelo Departamento de Cultura dão conta do imenso trabalho que desenvolvia em tempo integral, dedicando-se de corpo e alma a seus ideais. Sua amizade com João Batista Conti, também amante das artes e da cultura local, foi determinante para garantir o registro das manifestações culturais de Atibaia. Sem essa paixãoexpressa por ambos, driblando as dificuldades burocráticas com o empenho pessoal, provavelmente não teríamos registro algum. Seria mais uma ideia sufocada pela “espessa goma da burocracia”- expressão do próprio Mário de Andrade — e pelo descaso comum às instituições brasileiras.