A carta de Mário de Andrade publicada no O Atibaiense em 1938

Esse fato deu notoriedade às congadas de Atibaia, que, assim como hoje, enfrentavam dificuldades de aceitação por parte de algumas pessoas influentes da cidade em razão do desconhecimento de sua importância.

Márcio Zago

Em janeiro de 1938, o jornal O Atibaiense publicou uma carta de Mário de Andrade endereçada ao amigo João Batista Conti, então prefeito de Atibaia. A carta fazia referência à sua visita à cidade, ocorrida dias antes, quando Mário de Andrade, então Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, esteve no município para conhecer as congadas locais. Acompanhava o escritor uma comitiva da Sociedade de Etnografia e Folclore de São Paulo, que realizou o trabalho técnico de registrar a manifestação para análises e estudos posteriores.
Esse fato deu notoriedade às congadas de Atibaia, que, assim como hoje, enfrentavam dificuldades de aceitação por parte de algumas pessoas influentes da cidade em razão do desconhecimento de sua importância.
A carta, nas entrelinhas, tinha a intenção de “mandar recados”, aparando arestas ainda existentes na época e dizia:”Distinto amigo, João Batista Conti. Venho mais uma vez lhe agradecer por ter insistido comigo para que fosse ver as Congadas de Atibaia. A sua terra já me atraía muito pela beleza de suas paisagens e amabilidade do seu clima, porém agora considero ainda muito mais, por ver que é uma legítima fonte de tradições populares do nosso Estado. Eu bem sei que, em geral, a nossa alta sociedade, que se pensa presumidamente culta, tem propensão para desprezar as festas do povo. E, aliás, nesse sentido, peço-lhe mais uma vez que saúde em nosso nome, e posso acrescentar que em nome da Sociedade de Etnografia e Folclore de São Paulo, o Sr. Joviano Alvim, que soube com tão alta compreensão não só aceitar o papel de festeiro das cerimônias religiosas, mas emprestar o seu concurso pessoal e seu prestígio às festas populares. Se por todo o Estado encontrássemos pessoas de prestígio sociais assim compreensivas da prodigiosa fonte de estudos e da nacionalidade que reside nos costumes e tradições do povo inculto, certamente as nossas festas populares e tudo quanto possuímos de mais caracteristicamente nosso não estariam na deplorável decadência em que estão. Ora, Atibaia conserva ainda, pelo que vi, em excelente estado de preservação, pelo menos as suas congadas. O espetáculo dos quatro ternos de Congadas dançando, cantando e se cruzando uns com os outros, na frente do festeiro, num cortejo de curiosíssima e barulhenta complexidade, foi uma visão prodigiosa de tradição e beleza. Fiquei verdadeiramente encantado. Pude depois, graças à sua boa vontade, ver cada terno dançar e tirar sua ‘embaixada’. Que mundo de belezas, de coisas originais, as tradições ibéricas, a lenda e a religião! O espantoso é haver quem não compreenda essas coisas, quem não se agrade desses cantares agrestes às vezes tão belos como a mais bela melodia de Bach, e quem não se comovam com tamanhas e tão lindas tradições. Atibaia deve carinhosamente estimular essas festas populares que lhe pertencem. Pelo que sei de nosso Estado, posso lhe assegurar que nenhuma outra cidade paulista mantém tão vivas e tão perfeitas ainda as suas congadas seculares. Estas tradições devem orgulhar Atibaia tanto quanto a perfeição do seu clima, pois, se este nos conforta o corpo, nada melhor que as tradições para retemperar a saúde de nossa alma brasileira, todo dia adoecida pelos micróbios do rádio, do jazz, do tango e das guerras internacionais”.
A carta fazia menção ao Sr. Joviano Alvim, chefe do Partido Republicano Paulista de Atibaia, futuro deputado estadual pelo PSD e filho de um político que foi o mais influente deAtibaia, o Major Juvenal Alvim.
Joviano, assinando somente como “J”, havia publicado meses antes, no mesmo jornal O Atibaiense, uma dura crítica às congadas. Num texto contundente e carregado de preconceito, ele associava as congadas ao atraso, enaltecendo o rádio e o jazz que surgiam como símbolo do progresso que almejava.
O convite de João Batista Conti a Mário de Andrade, assim como a carta escrita por ele (que provavelmente sabiam que ganhariam visibilidade) foi uma resposta a Joviano. Mas o contra-ataque veio com a sutileza própria de gente inteligente. Joviano, por conveniência ou arrependimento sincero, reviu sua posição e foi o festeiro da festa naquele ano, recebendo por isso, ao invés de críticas, elogios do prestigiado Mário de Andrade, que na época já era uma figura de renome nacional. Método que, em tempos de truculência e valorização daburrice, é um exemplo a ser seguido.

* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.