Exploração sexual x prostituição infantil
O uso das palavras como posicionamentos políticos.
Anna Luiza Calixto
Eu sou suspeita para falar do uso das palavras como ferramentas de posicionamento político. Como escritora infantil, sou bastante cautelosa na escolha das palavras porque sei que cada uma delas conta uma história junto com o livro, transmitindo ideias e passando adiante uma visão de mundo propriamente dita.
Tendo esse pano de fundo em mente, vamos tensionar a discussão sobre essa expressão: prostituição infantil, associada à ideia do que nossa legislação chama de exploração sexual de crianças e adolescentes.
“Anna, dá na mesma, né?” – na verdade não. Quando eu escolho dizer prostituição infantil, estou colocando o fardo da decisão do que está acontecendo nas costas da criança e do adolescente que, nesse caso em particular, são vítimas de um sistema de opressão no qual existem adultos lucrando pela exploração do estupro de meninos e, sobretudo, meninas.
Prostituição é, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma ocupação. Ela faz parte da indústria do sexo como uma atividade adulta em que alguém troca alguma interação sexual por benefícios e compensações não necessariamente financeiras. O nosso país não considera se prostituir um crime, mas explorar outra pessoa com a finalidade de lucrar com interações de caráter sexual com ela é crime sim. Pior ainda se essa pessoa for uma criança ou um adolescente, porque aí além de tudo é trabalho infantil.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem uma convenção, a nº 182, muito conhecida como Lista TIP – Piores formas de trabalho infantil. Nela constam atividades insalubres, perigosas e moralmente prejudiciais ao desenvolvimento pleno da criança e do adolescente que são proibidas até os 18 anos de idade. Lá está a exploração sexual como uma das piores formas de trabalho infantil.
O Código Penal Brasileiro criminaliza a exploração sexual infantil: ela combina violência sexual com exploração da atividade laboral de crianças. Ou seja, é o suprassumo das violações de direitos.
Tem o agravante do consentimento válido também. Eu explico: o artigo 213-A do Código Penal Brasileiro entende que até os 14 anos de idade completos, nenhum ser humano tem o que a lei chama de consentimento válido, que podemos traduzir como capacidade de consentir. Aqui não estamos falando só sobre a parte psicológica do desenvolvimento cognitivo que torna uma pessoa apta a se responsabilizar por suas decisões de natureza sexual, mas estamos pensando na atmosfera social que faz com que meninos e meninas até essa faixa etária (e poderíamos estender até mais uns anos a frente) são mais facilmente influenciáveis e pressionáveis por sua condição de peculiar desenvolvimento já prevista pela Lei 8.069/1990, que eu e você conhecemos como ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Nessa idade a vulnerabilidade às violências é ainda mais acentuada, o que faz com que a lei os chame justamente de vulneráveis.
Se uma criança ou adolescente antes dos 14 anos não pode decidir nem sequer se deseja conscientemente se submeter a uma atividade sexual, que dirá decidir se vai lucrar com isso.
A grande questão é que, quando eu falo prostituição infantil, eu ajo como se não pudéssemos equiparar a violência sexual sofrida em casa – no âmbito doméstico e familiar – com a exploração sexual sofrida nas ruas. É como se eu estivesse supondo: “Tá na rua porque quer, se estivesse em casa não tinha sido estuprada” ou ainda “Até parece que é vítima, tá até ganhando dinheiro com isso!”. O buraco é bem mais embaixo, deu pra perceber?
O documentário Um crime entre nós – da Maria Farinha Filmes – mostra exatamente esse pensamento popular que permeia o senso comum das pessoas: uma coisa é a menina ser estuprada pelo pai, outra coisa é a menina sair de casa pra ganhar dinheiro com o corpo dela. Estamos falando de crianças e adolescentes, não existe posição proativa na decisão de prostituir-se, mas sim um adulto ou um grupo de adultos dispostos a agenciar essa atividade e orquestrar um sistema de exploração para lucrar em cima do estupro contra meninas que muitas vezes foram parar nas ruas justamente porque em suas casas eram violentadas sexualmente por parentes.
Não existe meia violência sexual, existe uma grave violação de direitos e pronto. Existem meninas nas ruas, postos de gasolina, rodovias, motéis de beira de estrada e esquinas sendo estupradas em troca de um pacote de biscoitos, uma carona de volta pra casa, um prato de comida, um botijão de gás, um animal pra família matar e comer, uma cesta básica ou uma quantidade ínfima de dinheiro. É exploração da dignidade sexual e integridade biopsicossocial e moral de quem nós deveríamos não só chamar, mas tratar como nossa prioridade absoluta, de acordo com os termos da nossa constituinte.
Eu sei muito bem que uma manchete com o letreiro PROSTITUIÇÃO INFANTIL chama bastante atenção, mas a que custo? Para relativizar o sofrimento da vítima de exploração sexual como se ela tivesse escolhido passar por isso? Como se o que estivesse acontecendo fosse uma criança ou adolescente saindo de casa escondido dos pais para ganhar dinheiro com o uso do sexo.
É importante lembrar que o uso insistente da expressão prostituição infantil revela nossos próprios preconceitos e estigmas associados às camadas mais pobres da nossa sociedade; às mulheres e às vítimas de exploração sexual. Desconsiderar o sofrimento delas porque existe algum tipo de compensação mais evidente do que nos cenários de abuso sexual doméstico é de uma ignorância aterradora.
Ninguém escolhe ser violentado sexualmente. Ninguém em sã consciência opta por interromper sua infância para integrar um sistema de exploração tão perverso e vil. São camadas de violações de direitos que formam um terreno denso em que essas meninas são vistas como culpadas pela violência que estão sofrendo, o que não é nenhuma novidade nessa tessitura social.