Não conta pra ninguém
Por que é problemático estimular crianças a guardarem segredo (seja lá qual for).
Anna Luiza Calixto
A quem interessa que uma criança guarde segredo? Andei pensando: toda vez que um adulto diz para uma criança “não conta pra ninguém, isso aqui é um segredinho nosso!”, ele está indiretamente ensinando a ela que está tudo bem manter um segredo como um vínculo preservado entre ela e um adulto.
A gente já conversou sobre isso aqui, mas é sempre bom lembrar: a gente vive num mundo beeeemadultocêntrico, então muitas das nossas decisões (pra não dizer quase todas) são tomadas em base dos nossos interesses como pessoas maduras, desconsiderando se aquilo faz bem ou mal praquela criança.
Eu tenho plena consciência de que oferecer doces para uma criança cuja família ou figuras de cuidado estabeleceram limites mais rígidos para o consumo de açúcar pode te divertir e você sabe muito bem que se a mãe dessa criança ficar sabendo dessa sua ideia genial ela vai ficar muito brava, então por que não utilizar como solução a boa e velha fórmula: “vou te dar esse docinho bem gostoso, mas não conta pra ninguém, nem pra sua mãe!”? Eu digo pra você o porquê: quando você utiliza essa ferramenta do segredo para constituir esse tipo de “vínculo” com a criança, ela acha que o segredo une vocês.
Tem um outro aspecto relevante nessa história também: na maioria das vezes nós, adultos, não damos a mínima pro que as crianças dizem e simplesmente ignoramos suas vozes e opiniões. Dessa forma nós abrimos severas brechas para potenciais abusadores, porque ele vai preencher as lacunas que nós deixamos, ouvindo essa criança e dando atenção para ela. Assim, quando ele quiser que ela guarde segredo sobre uma “brincadeirinha diferente” que ele propõe enquanto toca o corpo dela, fica muito mais fácil. “Ah, o tio gosta tanto de mim, que mal tem a gente ter um segredinho?”
Adicionando uma camada a nossa discussão, muitas dessas crianças cujas vozes são absolutamente silenciadas sentem-se valorizadas pela ideia de um adulto confiar um segredo a ela; essa é uma lógica sedutora. Se ninguém se importa comigo, quando um sujeito aparece me dando atenção e me confiando segredos que temos juntos, eu me sinto privilegiada. Deu pra entender o perigo?
Por isso eu sempre destaco que a educação sexual pautada na autoproteção precisa transpor o ensino das partes íntimas e incorporar outras práticas metodológicas à ele, como aquela que o Instituto Maristas demarca tão bem na campanha Defenda-se quando diz: “Se um carinho é legal, ele não precisa ser escondido!”
Durante as palestras do Projeto Bem me quer, sempre destaco que só existe um tipo de segredo bom: planejar uma surpresa bem legal pra alguém que a gente ama. O presente que o papai comprou pra mamãe de Dia das Mães eu posso esconder dela, porque quando ela descobrir vai ficar muito feliz. Por outro lado, nenhum tipo de toque no meu corpo, carinho ou brincadeirinha pode ser escondido, porque se fosse uma troca tão legal quanto esse adulto está tentando me convencer, ele poderia fazer isso comigo na frente de toda a família, não tem por que a gente se esconder.
Essa ruptura na abordagem do abusador é fundamental para que a criança abra os olhos para o único motivo pelo qual ele não quer que você conte pra ninguém: porque se alguém descobrir, ele vai ser responsabilizado pelo crime que está cometendo. Inclusive no livro Bem me quer, mal me quer? eu brinco com as crianças que devemos ter olhos de coruja diante desse tipo de proposta, olhos bem abertos e capazes de enxergar os sinais de que há algo de errado.
É nosso dever reforçar constantemente para nossos meninos e meninas a mensagem de que qualquer segredo que os faça sentir desconfortáveis ou assustados deve ser imediatamente compartilhado com um adulto de confiança. Mas não devemos nos iludir achando que todo abusador vai intimidar a criança, porque ele pode abordá-la de forma afetuosa e fazer com que toda a dinâmica daquele abuso soe como nada mais do que uma brincadeira carinhosa. Logo, é mais objetivo e funcional a gente demarcar que não é saudável manter um segredo que envolva seu corpo e sua sexualidade.
Bora criar um ambiente de comunicação aberta e segura com as crianças? Eu sei que esse tipo de diálogo pode soar desconfortável, mas é a maneira mais eficiente de proteger nossas crianças e prevenir situações de abuso. Porque a partir desse pano de fundo, qualquer segredinho com tio fulano ou vizinho ciclano vai causar um estranhamento para a criança, porque ela já tem uma referência do quanto isso pode ser problemático a partir do que aprendeu com suas figuras de cuidado.
Resumo da ópera: não alimente essa dinâmica relacional de segredinhos com seus sobrinhos, priminhos, afilhados, enteados, netinhos ou quaisquer crianças com quem vocês convivam! Combinado, gente? Pelo bem delas. Vamos trocar o “não conta pra sua mãe” pelo “vamos perguntar pra sua mamãe se tudo bem se a gente fizer isso”? Bem melhor, né?