Revitimização – o que temos contra as vítimas?

Uma reflexão sobre as práticas revitimizadoras que reforçam a estrutura da violência institucional no Brasil.

Anna Luiza Calixto

Onde você estava? Que horas? Sozinha? Quem estava com você? E o que você estava fazendo lá? Com que roupa?
Por aí vai… O interrogatório contra as vítimas de abuso, estupro, assédio ou importunação sexual no nosso país vai longe. Ainda mais quando a situação envolve um agressor poderoso, rico ou hierarquicamente superior à vítima. Isso dói MUITO. A vítima passa a ser tratada como réu, como quem deve explicações para se provar inocente, não o agressor. Qualquer vítima de violência sexual passa pelo solitário itinerário de pensar um milhão de vezes antes de denunciar porque começa, desde sua mais tenra idade, a prever várias consequências possíveis, sendo a principal delas a possibilidade de ser desacreditada, exposta e revitimizada.
Peraí, o que é revitimização? Revitimizar é, etimologicamente analisando, tornar alguém vítima novamente. Ela é violada uma primeira vez – através, por exemplo, do abuso sexual – e a cada questionamento inapropriado; vil e perverso ela torna a ser vítima.
Vamos utilizar como amostra exemplificadora aqui uma menina de 10 anos que esteja sendo violentada sexualmente pelo padrasto desde os 8 e finalmente toma coragem de pedir ajuda. Quero destacar aqui que, SIM, ela está sendo muito corajosa. Muitas de nós, mulheres, escondemos as violações aos nossos direitos por anos; por décadas. Então sabemos que, ao denunciar, essa menininha venceu muitos obstáculos e conflitos interiores, superando as vozes que provavelmente gritam dentro da sua cabeça: “VOCÊ É CULPADA!” Aí ela elege você como pessoa de confiança com quem ela pode se abrir para pedir ajuda e procurar apoio, suporte e acolhimento. Se a sua postura faz com que ela repita a narrativa da violência inúmeras vezes; conte para várias pessoas para que você não seja o único responsável por denunciar; compartilhe detalhes absolutamente desnecessários e íntimos ou qualquer conduta inadequada diante do sofrimento dela, o nome disso é REVITIMIZAÇÃO.
E mais: aqui estou delineando o cenário de revitimização nos aspectos do bojo doméstico e familiar, mas eu e você sabemos que no meio do sistema de garantia de direitos e dos trâmites judiciais acontece muita violência institucional e práticas revitimizadoras. Isso vai desde a denúncia até as etapas finais do processo. Quando uma aluninha do 3º ano do ensino fundamental procura sua professora para denunciar os abusos praticados pelo tio de 39 anos e essa professora não foi capacitada para lidar com essa revelação espontânea e fazer o acolhimento imediato da vítima, o que não raro acontece é que ela leve a criança que nem uma peteca pela escola para narrar o ocorrido para a diretora, para o coordenador, aí chama a família antes de comunicar o conselho tutelar – quando comunica, porque também lidamos com a mentalidade de quem acha que “Esse tipo de assunto se resolve em casa”, tentando colocar panos quentes sobre o caos.
É muito importante retomar aqui um ponto que temos discutido em alguns dos nossos textos, a coisificação da infância. Digo isso porque faz menos de 35 anos que a criança é vista como sujeito de direitos no Brasil. Há dez anos apenas proibimos violência física como forma de correção, castigo ou disciplina para crianças e adolescentes. Há sete somente, reconhecemos a revitimização desses meninos e meninas e instituindo um fluxo de denúncias para impedir esse tipo de prática violenta e perversa. Há dois – isso mesmo, você não leu errado: DOIS anos – penalizamos judicial e criminalmente a omissão diante de uma violência contra uma criança ou adolescente. Ou seja, a criança é vista como gente no nosso país há pouquíssimo tempo e ainda assim por apenas um recorte da nossa população.
Quando uma criança me escolhe como seu adulto de confiança, isso representa um tremendo privilégio, porque ela poderia ter procurado qualquer pessoa nesse mundo e me elegeu como alguém que acredita que vai acolhê-la e ouvi-la de forma digna e responsável. Eu não tenho o direito de frustrar essa busca da vítima. Meu papel é ouvir, abraçar, olhar nos olhos, reconfortar, não prometer mundos e fundos, mas assegurar que vou fazer meu papel como cidadã.
Se essa criança ou adolescente te pedir para não contar isso pra ninguém, não minta. Conscientize a vítima de que denunciar é a única maneira de quebrar o ciclo de violência e impedir o agressor de fazer novas vítimas. Mesmo que ela discorde, você tem o dever de denunciar. Tenho certeza de que um dia ela vai ser muito grata por isso. Todas seremos.