A Embaixada da Gratidão
Os velhos arquivos dão conta de que, em 1902, já houve uma grande confraternização entre o Clube Recreativo Atibaiano e o Clube Literário de Bragança Paulista.
Márcio Zago
Hoje pode parecer estranho, mas a troca de gentilezas entre cidades foi comum até determinada época. Essa cordialidade espontânea ocorria principalmente no meio cultural e esportivo, quando determinados grupos musicais, teatrais ou mesmo clubes recreativos se deslocavam até outra cidade visando ao intercâmbio social. De praxe, a cidade visitada retribuía da mesma forma, hospedando a outra. Tudo em nome da amizade.
Os velhos arquivos dão conta de que, em 1902, já houve uma grande confraternização entre o Clube Recreativo Atibaiano e o Clube Literário de Bragança Paulista. Quase trinta anos depois, um evento semelhante ocorreu entre as duas cidades, desta vez através do teatro. Era o ano de 1930, ocasião em que o Grêmio Dramático Leopoldo Froes, de Atibaia, se apresentou em Bragança Paulista, graças a Benedito Peranovick, que hoje poderia ser chamado de agitador cultural, termo inexistente na época.
A proposta era apresentar três peças teatrais acompanhadas de magníficos cenários. No mês seguinte, foi a vez de Bragança visitar Atibaia com o Grupo Dramático Amigos da Arte, coordenado pelo ator bragantino Eurico Mesquita. O grupo teve sua estreia nesse evento. O festival realizado no Teatro República foi denominado Embaixada da Gratidão e contou com o patrocínio do Sr. Antônio Vieira, que destinou todo o resultado financeiro obtido na apresentação para a Confraria de São Vicente de Paulo, uma organização criada anos antes para gerir a vila que acolhia idosos de baixa renda.
O espetáculo foi descrito com detalhes nas páginas do jornal O Atibaiense, destacando a abertura com a orquestra dirigida pelo músico Lázaro Chiocchetti. Em seguida, ocorreram as trocas de gentilezas entre as duas agremiações, não faltando a entrega de flores e o discurso do Sr. Nicolino dos Santos, redator do jornal Cidade de Bragança, que salientou a importância do evento depois dos desentendimentos ocorridos entre as duas cidades por conta das disputas esportivas.
A primeira peça apresentada, A Sombra, era de autoria do próprio Eurico Mesquita. Em seguida, foi apresentada a comédia Um Marquês à Força e, antes do terceiro ato, os bragantinos realizaram farta distribuição de laranjas aos espectadores. A última parte foi dedicada às apresentações musicais e às cenas cômicas com o amador bragantino Ramiro Vieira, que, trajando um caipira, interpretou a toada Luar do Sertão, de Catulo da Paixão Cearense, acompanhado pelo grupo regional Lua Triste. Durante as apresentações, os cenários utilizados em Bragança pelo Grêmio Dramático Leopoldo Froes ficaram expostos para apreciação do público, fato que denota o grande sucesso alcançado pela produção da peça. Após a cerimônia, o elenco bragantino foi recepcionado na Pensão Atibaiense com mesa farta de chás e doces. A recepção foi tão boa que, dois meses depois, a companhia retornou à cidade para uma segunda apresentação no Teatro República. Desta vez, o ator e organizador do Grupo Dramático Amigos da Arte, Eurico Miranda, além de apresentar mais uma peça de sua autoria, trouxe uma nova versão para a letra da música Cidade Maravilhosa, atribuída a Noel Rosa. A letra, impressa em folheto, era uma homenagem a Atibaia e foi distribuída entre os espectadores visando a facilitar o acompanhamento do público durante a apresentação.
A música tinha sido o grande sucesso do carnaval passado e, na versão local, ganhou o nome de Formosa Atibaia: “Atibaia, terra querida / De encanto e ilusão! / Atibaia estremecida / Que nos prende o coração! / Atibaia, que nos encanta / Hospitaleira cidade / Princesa desta linda terra / Toda poesia de verdade / Nós vos saudamos / Oh povo gentil / Guardamos, encantos mil / Deixamos, a gratidão e a saudade / A ti, formosa cidade”. Essa situação, ocorrida em 1930, apresenta valores e costumes que deixamos de praticar. Tempos em que o respeito e a empatia se sobrepunham à indiferença e ao individualismo. Hoje, a Embaixada da Gratidão é somente uma notícia velha adormecida num arquivo de jornal, mas revela com precisão quem fomos, quem somos e para onde vamos.
* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.