Compartilhar não é denunciar
O que o caso de espancamento contra criança em praia baiana nos ensina sobre responsabilidade social, senso crítico e denúncia.
Anna Luiza Calixto
Passei a manhã recebendo de alguns de vocês o vídeo em que um homem espanca uma menininha na praia. Sobre o caso, tenho conversado a respeito com vocês mas, o que quero evidenciar é que ninguém tem o direito de publicar ou enviar este vídeo por aí livremente. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente | Lei 8.069/1990) proíbe este tipo de compartilhamento e aqui exponho dois motivos que justificam esta proibição.
Primeiro motivo… A criança já sofreu uma violência séria em público, não se deve revitimizar a menina expondo as cenas, este é outro constrangimento que deve ser evitado. Principalmente este vídeo específico que sequer borra o rosto da criança e das demais pessoas no ambiente. Imaginem por um instante o tamanho do sofrimento da criança sofrendo esta humilhação pública. Não importa a intenção!
No vídeo vê-se um número expressivo de pessoas em volta que nada fizeram para tentar impedir a violência ou proteger a criança, isto me deixa perplexa. Vocês pensam que o juiz ou juíza da vara da infância e juventude ficam rolando o feed procurando cenas de violência contra crianças e adolescentes? Não existe isto de “compartilhe até que justiça seja feita.”
A proibição legal referente ao compartilhamento de imagens e vídeos se refere à todo tipo de violência contra crianças e adolescentes, com recorte importante para atos de violência sexual (cuja circulação online envolve todo um mercado extremamente lucrativo para os exploradores). É exatamente por isto que não podemos nomear esta violação de direitos como pornografia infantil”, porque teoricamente a pornografia é um meio de entretenimento adulto e nós simplesmente não podemos aceitar que cenas de violência sexual contra crianças e adolescentes (é assim que nomeanos) possam servir para entreter opressores.
E é aqui que eu entro no outro motivo pelo qual não podemos contribuir para a difusão destas imagens (nem mantê-las salvas no celular sem fins judiciais ou enviar pelo WhatsApp). Existem MUITAS pessoas que se excitam com este tipo de conteúdo. Toda violência, como já escreveu a filósofa pós-estruturalista norte-americana Judith Butler, começa com uma relação de poder. Ou seja, a humilhação e o sofrimento de um ser mais vulnerável satisfaz muitos adultos que veem este tipo de vídeo sorrindo.
“Ah, mas só posto no meu perfil e envio para pessoas do meu circulo social.” Na Internet não temos controle de quem vai ter acesso àquele conteúdo ou outro qualquer. A pessoa para quem você enviou pode encaminhar para outras três pessoas e este efeito cascata muito frequentemente faz viralizar cenas de violências severas, como foi no caso do menino encontrado em estado de desnutrição e privação sanitária em um barril. Perdi as contas de quantas vezes vi aquele vídeo passando pelo meu feed.
Esta prática de viralizar conteúdos violentos e vexatórias envolvendo crianças e adolescentes faz com que o agressor se sinta como um influenciador digital flagrado fazendo algo incorreto, gravando um vídeo pedindo desculpas publicamente e, para isto, utilizando a imagem infantil. Ele precisa ser RESPONSABILIZADO. Não somos nós, como sociedade civil, que decidiremos pelo perdão ou não da perversidade dos seus atos. Casos desta natureza pertencem, no âmbito penal, à esfera judicial e – no campo da defesa das meninas e garantia de atendimento psicológico e outras medidas pertinentes – à rede de proteção.
Encerro esta reflexão lembrando a vocês de que o vício popular de “não meter a colher” tem prejudicado também crianças e adolescentes sob um pretexto parecido. “O filho não é meu, não posso fazer nada.” Entendem o que quero dizer quando repito até a exaustão que toda criança é nossa criança? Todos nós somos responsabilizados pelo artigo 227 da Constituição Federal Cidadã de 1988 por zelar pela proteção integral destes meninos e meninas com prioridade absoluta. Só se comover não é proteger. Apenas compartilhar não é denunciar. Principalmente, sentir pena não é se importar.