Esquecidas ao relento: o inverno das crianças em situação de rua no Brasil
Os cobertores que nos aquecem não podem nos distanciar da empatia e solidariedade.

Anna Luiza Calixto
Nas filas de mercado e dentro de elevadores o assunto parece não poder ser outro: como está frio! Distantes do nosso desconforto ao levantar de uma cama quentinha de manhã, milhares de crianças no Brasil não têm essa escolha. Dormem em papelões, expostas à violência, ao frio e à indiferença. Para elas, o inverno é mais do que uma estação: é um lembrete cruel de que foram deixadas para trás, abandonadas no solo de sua Pátria Mãe Gentil.
O número exato de crianças em situação de rua no Brasil é incerto. Estimativas apontam algo entre 30 e 50 mil, mas sabemos que há uma subnotificação ainda mais assustadora, pois muitas crianças não aparecem nas estatísticas. São negras, periféricas, empurradas para fora do sistema de proteção que deveria acolhê-las.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é cristalino: toda criança tem direito à moradia, saúde, alimentação, dignidade e proteção integral. Esses direitos devem ser prioridade absoluta, conforme diz nossa Constituição. Mas quando uma criança está sozinha na rua, sem adulto responsável, quem cuida dela? Onde está o Estado?
No frio, a negligência vira risco de vida. Casos de crianças com pneumonia, infecções graves e até mortes por hipotermia são recorrentes e, acreditem, plenamente evitáveis. Abrigos se recusam a acolher menores desacompanhados. Políticas públicas são fortes no papel, mas fracassam na execução.
Essa negligência não é apenas administrativa. É moral, social e política. É uma escolha coletiva de ignorar corpos pequenos e desprotegidos que dormem nas nossas calçadas. Quantasvezes seguimos caminhando e desviando dos corpos infantis nas calçadas, como se fossem obstáculos a ser evitados?
É preciso romper com essa naturalização da miséria infantil. O frio não perdoa. Mas é a indiferença que mata.
O que fazer? Primeiro, enxergar. Depois, agir. Apoiar redes de acolhimento e proteção. Pressionar autoridades por políticas efetivas, com orçamento, com continuidade, com escuta ativa das crianças. Acionar o serviço de abordagem social no município. E, acima de tudo, não esquecer.
Toda criança tem direito à infância plena, não à sobrevivência solitária nas ruas. Não podemos aceitar que, em um país tão vasto, tão rico e potente, haja crianças morando no nosso esquecimento.
Enquanto houver uma só criança dormindo no frio, nenhum de nós deve dormir em paz.



