Qual o preço de ser uma criança boazinha?
O custo da obediência cega e servil que muitos adultos “ensinam” aos seus filhos.
Anna Luiza Calixto
“Senta aqui no colo do titio.” – diz um homem adulto para sua sobrinha de 10 anos na festa de família. Ela rapidamente associa essa frase ao que seus pais lhe ensinaram. Você deve estar pensando que eles ensinaram a ela sobre o direito de dizer não e se sentir confortável para recusar contato físico com um adulto que não a faz se sentir bem, né? Na verdade, não. O que ela aprendeu foi a ser uma menina boazinha e obediente, que não dá trabalho pra ninguém e obedece a tudo o que os adultos pedem ou, sob essa perspectiva, mandam.
Aí é que está o perigo. Longe de mim e dessa coluna defender a falta de limites, de educação e de critérios na formação parental de crianças e adolescentes, mas com certeza precisamos delinear uma educação que liberte as meninas e os meninos de toda forma de violência e opressão através de duas palavrinhas mágicas: senso crítico.
Uma coisa é obedecer à tia da cantina quando ela diz para a turma formar fila na hora do recreio: isso faz sentido para que cada um tenha sua vez de pegar a própria comida. Isso ou obedecer ao pedido de silêncio da professora, tão necessário para que a aula flua bem e todos aprendam. Mas nada disso é doutrinário e sim discutido, acordado e determinado de forma coletiva, pelo bem de todos e todas.
Outra coisa totalmente diferente é obedecer a um adulto que se utiliza da sua autoridade e pose adulta para abusar, agredir e violar os direitos das crianças, valendo-se da máxima: “Porque eu tô mandando! Eu sou adulto e sei das coisas.” Sabe sim: sabe do que quer e intenciona, mesmo quando isso faz mal para os pequenos.
Muita gente vai ler essa Coluna e pensar: “lá vem a turma dos direitos humanos para tirar a autoridade do pai e da mãe e deixar essa criançada toda rebelde!” Olha, se a rebeldia vai ser acompanhada do discernimento do que lhe faz bem ou mal, é melhor ser rebelde do que obedecer ao avô que lhe disse para não contar pra ninguém o que ele faz com ela simplesmente para não discordar ou ser malcriada.
Aqui estabelecemos com transparência a diferença entre a obediência consciente à autoridade e a subserviência cega que se alinha com o autoritarismo. Percebe a linha tênue? Não estou defendendo o chilique rodando no chão do mercado porque a mãe não comprou a barra do chocolate mais caro da prateleira, mas sim crianças que sabem discernir os seus limites podendo questionar com educação, diálogo e respeito.
O artigo 16 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) preza pelas liberdades das crianças e adolescentes, dentre as quais figura a liberdade de expressão e opinião, além de poder buscar auxílio, refúgio e orientação. Ou seja: nada escapa da sombra da legislação. Pode checar esse artigo no Google, vai por mim.
“Ai, Anna, mas exigir esse tipo de repertório da criançada é utopia!” – só é utópico se nós, adultos, não estamos habilitados para orientá-las com palavras simples e lúdicas.
Ter liberdade para se expressar não é cuspir na cara dos pais ou arrotar na mesa do almoço de domingo, mas sim entender que nem tudo eu preciso obedecer porque um adulto mandou, a não ser que aquilo faça sentido e quem esteja dizendo seja um adulto que exerce uma função de cuidado para comigo, sendo referenciado para mim como uma autoridade.
Parafraseando Pitágoras: “É preciso corrigir certos adultos para que não seja preciso punir as crianças.”
A belíssima campanha Ninguém Mexe Comigo da querida Paola Belucci já dizia: “Não é todo adulto que faz sempre certo tudo todo o tempo! Criança também sabe muito do seu mundo e do seu sentimento.” – vai no Youtube assistir que vale super a pena.
Ainda citando a campanha: “Gente pequenina já é gente e toda gente pode ser gigante.” Ensinemos nossas crianças a abrir o berreiro quando necessário. Todas sairão ganhando com isso.