Você conversa com a criança que você foi um dia?
Como fazer as pazes com nossas versões anteriores e validar suas dores.
Foto ilustrativa CANVA
Anna Luiza Calixto
Quantas vezes nas atividades do Projeto Bem me quer eu já ouvi adolescentes, jovens e adultos falando mal da criança que foram um dia? Isso vai desde dizer “nossa, tenho tanta vergonha das coisas que eu falava ou fazia/da forma como eu me posicionava” até formas mais duras como “cara, não sei como os meus pais me aguentavam, eu era uma criança chata, birrenta, fresca, insuportável!” Ultimamente, sempre que eu escuto esse tipo de discurso, tensiono da seguinte forma: “Quantas vezes você já conversou com a criança que você foi um dia?”
Digo isso sem demagogia ou papo de coach, porque há alguns anos essa fala saía da minha própria boca. Eu não me conectava de jeito nenhum com a criança que eu fui e a julgava bastante também. Tinha vergonha até dos textos que eu escrevia quando era mais nova. Eu quero dividir nossa conversa aqui em duas frentes temáticas, ok? A primeira delas é a importância de compreender que, por mais que você não tenha muito orgulho ou orgulho nenhum das coisas que você fazia quando criança ou na adolescência, essas tuas versões se somaram e se olharam nos olhos pra se fundirem e se tornarem a pessoa que você é hoje.
Demorei MUITO para entender isso, muito mesmo. Eu não lia textos que tivesse escrito há mais de dois anos, queria me enfiar num buraco quando alguém dizia que tinha lido um dos meus primeiros livros, já me adiantava correndo para dizer que mudei meu posicionamento sobre isso ou aquilo; que hoje eu diria tal coisa de tal outra forma e por aí vai. Depois de muito conversar com pessoas mais velhas e de levar isso para a terapia, consegui entender que foi escrevendo daquela maneira que eu aprendi a escrever como hoje. É curioso porque hoje eu pego uns textos que escrevi com 16/17 anos e me orgulho, dá até um quentinho no coração. Mesmo que o estilo seja diferente do que eu gosto e prefiro colocar no papel hoje, não dá pra desconsiderar que é uma construção bonita de ver. Até porque tenho plena certeza de que com trinta ou quarenta anos vou escrever de forma diferente, até falar de forma diferente.
Quando a gente consegue abraçar nossas versões anteriores, desde aquela que usava aparelho nos dentes e falava que não se considerava feminista, como é o meu caso, a gente faz as pazes com uma parte de nós mesmos e consegue dar um passo além, que é nossa segunda frente de discussão aqui no episódio de hoje.
Tenho pontuado nas minhas palestras sobre violência sexual contra crianças e adolescentes a importância de acolher as dores de quem fomos um dia, não chamar nossas angústias de frescuras nem fechar os ouvidos para o que nossa criança gritava, chamando isso de birra e pirraça. Por que será que você tinha tanta resistência em ficar na companhia do seu tio? Por que aquela brincadeira de cosquinha do seu avô te incomodava, enquanto a do seu pai não? Por que você chorava quando tinha que ficar na casa dos seus avós ou ir pra aula? Quais mecanismos te condicionaram a silenciar essas dores e se comportar como uma criança boazinha? A que custo você se tornou uma criança que não dá trabalho?
Quando eu comecei a me fazer essas perguntas, mudei a forma como eu me relaciono comigo. Eu comecei a entender que gritar e chorar eram as únicas formas que eu conhecia de expressar que havia algo de errado acontecendo. Não porque eu era inferior ou limitada, mas porque eu ainda não havia desenvolvido outros recursos de inteligência emocional correspondentes ao meu estágio de desenvolvimento psicoemocional e cognitivo.
Não tenha vergonha de não ter pedido ajuda, você não sabia que podia. Não se puna por não ter contado para ninguém, você sentiu medo e não sabia que tinha com quem contar, em quem confiar.
A escritora Lya Luft é autora daquela célebre citação que diz que a infância é um chão em que pisamos a vida inteira e ela tinha razão. Nada do nosso comportamento adulto é um padrão irrefletido e desconectado das nossas vivências anteriores. Nossos incômodos, prazeres e padrões têm muito a ver com a maneira como fomos apresentados ao mundo; como conduziram nossas descobertas e nos ensinaram as coisas da vida.
Só que muitas vezes a gente se esquece de que já fomos crianças, não é? Muitas vezes fazemos de conta de que já nascemos adultos e tentamos passar uma borracha no que nos faz ser quem somos. E a novidade não tão alegre é que não somos feitos apenas de memórias lindas e momentos doces; frases de efeito do Instagram e músicas agradáveis aos nossos ouvidos. Nossa vida não é uma pasta no Pinterest e nem teria sido nossa infância, né? Vamos então fazer as pazes com a criança que fomos, porque não deve ter sido fácil pra ela também. Ela deve ter sentido muita raiva, medo, tristeza, angústia, dúvidas e tudo o que aconteceu não necessariamente foi culpa dela. Ela também estava tentando fazer o seu melhor. Todos nós estamos.