Nunca foi nossa culpa

O porquê você não deve carregar o peso da violência que sofreu.

 

Anna Luiza Calixto

 

Quando gritamos para o mundo que nós sobrevivemos, direta ou indiretamente constrangemos um agressor. E isso, mesmo que seja pouco diante da barbárie por ele praticada, é absolutamente importante. Ninguém aguenta mais o avô abusador sentado na ponta da mesa na ceia de Natal da família feliz. Ninguém quer o tio violento no porta-retrato da família. Você não deve ser obrigada a pedir a benção para o pai que visitava o teu quarto à noite na sua infância e não era para te dar um beijo de boa noite.
E a reflexão de hoje é fruto não só do trabalho diário que tenho feito nas escolas em contato com potenciais vítimas de violência sexual, mas principalmente do recente caso de uma menina de 13 anos de idade que sofreu um estupro de vulnerável coletivo por cerca de 10 a 12 homens na Praia Grande, litoral de São Paulo.
O que esse caso tem a ver com a lógica perversa que culpabiliza as vítimas? Eu explico. Essa adolescente estava conversando pela internet com um menino de 15 anos, que convencionou-se chamar de seu “namoradinho de internet.” Eis que um dia ele decidiu enviar um mototáxi para buscá-la para encontrá-lo e, quando ela chega ao bairro Vila Sônia, o adolescente tenta convencê-la de fazer sexo com ele e um amigo, o que ela recusa.
Vale lembrar queo artigo 213-Ado Código Penal Brasileiro destaca que antes dos 14 anos de idade nenhuma criança ou adolescente é considerado pela lei como alguém capaz de consentir. Inclusive a ministra do Superior Tribunal de Justiça Daniela Teixeira disse uma vez que “muitas vezes, crianças e adolescentes devem ser protegidos até mesmo de suas próprias vontades.” Ou seja, mesmo que essa adolescente disse que sim, continuaria sendo uma violência, tá? Mas não foi o que aconteceu.
Ela foi levada para o segundo de três locais por onde ela passaria durante essas pavorosas 48hrs e se viu entre mais de 10 homens. Naturalmente ela não esboçou qualquer reação e, absolutamente paralisada, foi estuprada coletivamente.
Vamos para o outro prato dessa balança: do outro lado tem a família dessa adolescente que se desesperou com o desaparecimento dela. Existe uma farsa popular que diz que diante do desaparecimento de alguém deve-se esperar entre 48 e 72 horas para acionar a polícia. Mas em 2025 vai completar 20 anos a lei 11.259/2005, a Lei da Busca Imediata. O nome já se explica, né? Quando se trata de criança e adolescente, não existe isso de “espera mais um pouquinho, vai que ela volta“; “vai que está na casa de uma amiguinha” ou “isso é coisa de adolescente, deve estar no máximo com o namoradinho.” NÃO! Olha o que pode acontecer em 48 horas. Por isso, em caso de desaparecimento de crianças e adolescentes, a busca deve ser I-ME-DI-A-TA! Com meninos e meninas nessa faixa etária, cada segundo vale ouro e escoa pelas nossas mãos.
Por isso, acrescento ainda uma nova reflexão: permitir que crianças acessem a Internet sem qualquer nível de supervisão parental é a mesma coisa que largar um filho numa rua escura à meia-noite. Eu realmente vejo a Internet como esse beco desconhecido em que podemos encontrar de tudo, inclusive um adolescente de 15 anos premeditando o estupro de uma menina de 13.
É difícil demais explicar o que não deveria precisar ser dito, mas vamos lá: a cada 8 minutos uma menina é estuprada no Brasil. Esse número não saiu da minha cabeça, mas do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Dói, né? Só durante nossa conversa aqui, pelo menos 3 meninas brasileiras vão passar por esse trauma que nos arranca as palavras.
Essa adolescente da Praia Grande sobreviveu, mas não me deixa esquecer do que Hebert de Souza, que conhecemos carinhosamente por Betinho, disse um dia: “Se não vejo na criança uma criança é porque alguém já a violentou antes e o que eu vejo é o que restou de tudo o que lhe foi tirado.” Pois é, chegamos tarde demais na vida dela. Esses homens já haviam deixado um rastro de destruição antes de conseguirmos olhá-la nos olhos.