Flor Serrana

O Hotel Rosário, hoje Grande Hotel Atibaia, e o Hotel Municipal, já demolido, eram os locais onde os visitantes se hospedavam com maior frequência.

Márcio Zago

Nas primeiras décadas do século XX, o clima e a paisagem de Atibaia já contavam com certa fama país afora. O ar, considerado na época um dos melhores do planeta, assim como a qualidade de suas águas, atraíam inúmeros turistas que vinham em busca de lenitivo para as doenças respiratórias ou para um simples passeio e descanso.
O Hotel Rosário, hoje Grande Hotel Atibaia, e o Hotel Municipal, já demolido, eram os locais onde os visitantes se hospedavam com maior frequência… Entre eles, artistas. Em 1938, o Hotel Rosário hospedou o poeta Guilherme de Almeida. Tocado pelas qualidades da cidade, Guilherme de Almeida escreveu para o jornal O Estado de São Paulo, edição de 27 de julho, um dos mais bonitos textos escritos na época por afamados escritores sobre e para Atibaia, a crônica “Flor Serrana”. O texto também foi publicado no jornal O Atibaiense dias depois: “Flor de altura… Vi-a pela primeira vez, neste quase pôr do sol deste quase fim de julho, branquear, súbita, numa falha de bambuzal, a uma curva brusca do auto que desfilava a estrada cor de rosa. Heráldica flor-de-lis há trezentos anos abotoada perto do céu, à sombra das serranias, foi pouso de sonhadores: pouso dos homens rudes das primeiras ‘entradas’ para a terra das minas (Castello Branco e, há quem diga, Fernão Dias também sonharam sobre suas pedras seus sonhos de outra escada de Jacob…); pouso de poetas à procura da sua Torre de Marfim (Rodrigues de Abreu, Martins Fontes, Amadeu Amaral – ‘Esse paraíso possível na terra’ (…).”A citação ao tema bíblico da “escada de Jacob” e da “Torre de Marfim” expressa a simbologia encontrada pelo poeta para considerar a cidade como um portal para o céu, o caminho para o paraíso, reforçando a frase de Amadeu Amaral.
O texto continua… “Vejo-a estirada ao longo do lombo mole da colina. A torre branca da Matriz, que tinha antigamente uma estranha cúpula barroca (a olaria ficava lá em baixo, a um quilômetro: e foi preciso um quilômetro de negros em fila para trazer os tijolos, jogados de mão em mão, do ribeirão até ali…); a torre do Rosário, que me fez pensar nuns versos carinhosos de Villon: pauvrette et ancienne…”; perto o grito atual, nítido e limpo do “Rosário Hotel” (cimento armado palhetado de mica, vidros altos e claros, brilhos metálicos nos móveis contra paredes lisas de cor forte e unida…); e, ao lado, um Luna Park rodante e luminosa girândola centrífuga de gentes entre chispadas explosivas de motocicletas, automóveis, auto-ônibus, caminhões. Flor Serrana…”Nesta analogia, Guilherme de Almeida reforça a ideia da tradição e da contemporaneidade, do novo e do velho presente na cidade e expressa no verso do poeta francês François Villon.
As velhas igrejas e suas origens em contraste com os modernos ambientes da época, personificados pela arquitetura do Hotel Rosário (bastante arrojada para a época), pelo trânsito de veículos que começava a crescer na cidade e pelo Luna Park, um parque de diversões instalado no Largo do Santo Cruzeiro na mesma semana em que Guilherme de Almeida esteve em Atibaia. A crônica finalizava: “Aí, na tarde de ontem, no seu horto-pomar-jardim, um amigo poeta colheu uma flor cabocla – uma ‘saudade’ branca – e me disse: Leva-a. É para você poder dizer que levou uma saudade de Atibaia… A flor simplesinha está aqui, ao meu lado, toda debruçada do seu vaso de cristal – de rocha sobre o papel que escrevo. Há de morrer. Mas essa é a única flor que pode morrer, porque é a única que tem uma alma: o seu nome, que é o seu perfume…”O amigo poeta citado por Guilherme de Almeida era o então Prefeito de Atibaia, João Batista Conti, que provavelmente colheu a “saudade” em sua casa, na Rua Treze de Maio. Tempo em que os afazeres oficiais do cargo público também tinham espaço para a arte e a sensibilidade.

* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.