Respeito com o Caipira
Na época Perdões ainda era distrito de Nazaré Paulista, e tinha um perfil muito ligado à religiosidade.
Márcio Zago
A partir de 1920 o jornal “O Atibaiense” passou a publicar artigos de Francisco Damante, um jovem e promissor professor, pesquisador e escritor da cidade vizinha de Perdões. Francisco Damante, natural de Piracicaba, começou a lecionar na cidade por volta de 1914, quando conquistou o respeito e admiração daquela comunidade.
Na época Perdões ainda era distrito de Nazaré Paulista, e tinha um perfil muito ligado à religiosidade. Em dois artigos publicados por ele o tema foi o caipira. Um pouco antes Monteiro Lobato havia escrito Urupês, que mais tarde seria lançado em livro, onde o personagem Jeca Tatu se revelava um trabalhador rural abandonado pelo Estado, à mercê de enfermidades típicas dos países atrasados, da miséria, do atraso econômico e do descaso político. O estereótipo do caipira como personagem inferior em relação aos doutos, cultos e ilustrados (reforçados pelo preconceito linguístico da época), já eram utilizados a exaustão. O próprio jornal “O Atibaiense” cultivava essa imagem nas colunas que mantinha dedicadas ao humor.
Os dois artigos escritos por Francisco Damante abordavam justamente essa relação entre o conhecimento “intuitivo” do caipira e o saber culto dos letrados. Um deles, de nome “Gente que sabe ler”, narrava o encontro do escritor com um sorridente caipira que veio lhe pedir um jornal sobre Perdões. Surpreso, o escritor descobriu quanto o caipira era “ilustrado” e consciente da importância do conhecimento e dos estudos. No final do texto o caipira recitava uma quadra que dizia: “Forte coisa é o livro / Onde se aprende a lê/ O pió cego da terra / É aquele que não qué vê. /Eu ganhei um cartia/ Pra prendê o ABC/ Só hoje sei quanto vale/ A gente que sabe lê! / A maió riqueza nossa / É sabe lê e escrevê / E quem isso não sabe / Não paga a pena vive! / É coisa triste na vida / Quem não sabe lê e escrevê/ É sempre bobo dos ôtro… / É mior antes morrê!”.
O segundo artigo, de nome “Poeta Sertanejo”, versava sobre o mesmo tema, e comentava sobre outro encontro. Dessa vez com um reputado poeta e tocador de viola que, segundo ele, era um “matuto genuíno de Perdões”. No texto surgia a opinião de Francisco Damante sobre o caipira: “Observando-se atentamente a nossa tão mal falada gente roceira; observando-lhes a inteligência e a perspicácia de sua veia poética; botando-lhes os seus modos esquisitos, as suas maneiras estranhas, o seu viver – misto de cabo de enxada e de toque de viola – chega-se, não a dúvida, mas a conclusão de que ela, absolutamente não é bronca, obtusa, quase irracional como se afirma. Não, ela é simplesmente como essas florinhas campestres que sem cultivo e sem carinho crescem a mercê do tempo e, sem cuidado e sem o trato, onde desabrocham, ali morrem (…)”. Finalizava o texto a letra de uma moda de viola do matuto de Perdõesque chamava “Num Paga a Pena Casá”: “Na quadra que temo hoje / É causo pra maginá / Um home sendo sortero / Num paga a pena casá / E se vendo casada / Persisa de trabaiá / Nem que tenha uma preguiça /Não teme dos cafezá! / A gente chega lá em casa / Muié garra falá / O toicinho já cabô / Farta assuca, farta sá. / Marido senta no pé do fogo / E começacuxilá! /Oia pra cima e não vê / Nada…nada no vará / E não tendo o que comê / Os dois se agarra brigá / E o home fica maluco / Muié começa apanhá / Conseio! /Menina, minha menina / Vô por bem te aconseiá / Merce nunca namore / Que é pecado mortá!. Em 1950 o primeiro grupo escolar de Perdões recebeu o nome de Francisco Damante.
Mais tarde seu filho Hélio Damante também recebeu uma homenagem da cidade ao ter seu nome eternizado em outra escola local. Hélio Damante ganhou projeção como jornalista e escritorao se debruçar sobre o tema das manifestações folclóricas e da linguagem popular, ganhando notoriedade como pesquisador. Influência de seu pai e, principalmente, do ambiente rural de sua terra natal: a pequena Bom Jesus dos Perdões.
* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.