Quem vê cara não vê a automutilação
Anna Luiza Calixto
Em São Paulo, o dia era de verão, mas as mangas do moletom do jovem que assistia à intervenção do Projeto Bem me quer (ferramenta de cidadania itinerante com a qual viajo para conhecer as salas de aula brasileiras de doze estados brasileiros) estavam repuxadas até o fim dos pulsos.
A gola cobria a boca e os dedos eram inquietos sobre a tela do celular, que era bloqueada e desbloqueada, bloqueada e desbloqueada, em uma sequência compulsiva que era combinada aos olhos que não me encaravam fixamente durante a explanação, mas quando encontravam os meus iam direto ao chão.
Curiosamente, este aluno estava na primeira fileira desde o início da nossa atividade, o que me permitiu observar estes detalhes. Muito embora, em um dado momento da minha fala, ele se levantou e foi até o banheiro, de onde demorou quase vinte minutos para retornar.
Foi exatamente quando abordei o ponto principal da intervenção naquela escola, a automutilação entre crianças e adolescentes – tendência que cresce a níveis assustadores pelo mundo, em função da grande exposição que ambas as faixas etárias atravessam mediante os conflitos típicos do período e, ainda mais, com o advento maior da nossa época: a internet e a recém-chegada pressão estética por meio das redes sociais.
Os dados acerca da automutilação entre o público infanto-juvenil são bastante defasados, não obstante a sensação que predomina nos corredores das escolas e nas salas de atendimento psicossocial das redes municipais de saúde é a de aumento – e, válido ressaltar, a de predominância entre o gênero feminino, o que nos aponta um importante sintoma dos efeitos sociais da pressão enganosa sobre o corpo ideal e o padrão de vida (e de consumo) perfeitos, ambos inalcançáveis.
Os adolescentes autocortantes recorrem aos mais variados recursos para suas lesões, versando entre a lâmina do apontador escolar, a faca da cozinha, a cera quente de uma vela acesa, a lâmina de barbear… Tais objetos são aplicados aos pulsos, às coxas, ao abdômen e, enfim, onde a visibilidade for menos provável – o que não significa que os cortes não sejam alarmantes, que não sejam pedidos de socorro, que não apontem a urgência física de dar segundo lugar às dores psicológica e emocional, capazes de deixar marcas tão profundas quanto a automutilação.
Por trás dos casos está a violência, o medo, a ansiedade, a baixa autoestima, a perversidade da pressão estética, o abuso sexual e o trabalho infantil. Violência constrói violência – mas não pode ser combatida com violência.
Os adolescentes cortantes precisam ser cuidados e ouvidos dentro de toda a complexidade destas lesões, uma vez que muitos casos de suicídio nesta faixa etária contam com um histórico de mutilações e de bullying – e o mesmo acontece com os fatídicos atentados em território escolar, que vem ganhando um espaço preocupante entre as manchetes brasileiras.
Falar como se o problema não existisse não contribui para que ele seja resolvido – e a história do Brasil está cheia de exemplos que comprovam isto. A automutilação é um sintoma de problemas ainda mais severos que estão caminhando. Por isso é um pedido de socorro, uma tentativa de substituir a dor psicológica por um ou vários cortes pelo corpo. Afinal, eles estancam – mas o que está por trás deles permanece sangrando.
Para além da interação escolar com as crianças e adolescentes, é urgente que as famílias estejam dispostas a ouvir e dar apoio, suporte sem julgamento e o afeto de que todos eles precisam para lidar com a dor, seja de que natureza ela for. Esconder os objetos cortantes a todo custo e repreender violentamente, aplicando castigos e bloqueando o uso da internet são medidas imediatistas que podem até dar um retorno a curto prazo, impedindo que o jovem tenha qualquer saída para se automutilar, mas a longo prazo só alimentam o ódio e a solidão de quem não foi estimulado a enfrentar a questão de forma madura e consciente.
Perigosa, multifacetada, emergencial e pertencente a todos nós, a automutilação é uma ferida, uma fratura social que precisa ser remediada enquanto não flerta com o suicídio. A cura está na velha – mas nunca antiquada – prescrição do diálogo, do olhar sensível e necessário sobre crianças e adolescentes que cometem violência para curar a violência de que foram vítimas.
O tratamento começa quando convidamos o adolescente do início desta Coluna – lembra-se dele? – para conversar. E foi o que, ao final da intervenção, eu fiz. A cura começa quando os olhos dele pararam quando encararam os meus e a primeira lágrima escorre, a primeira palavra é dita, o primeiro abraço é dado e a escuta acontece – uma escuta sem cortes, sem julgamentos, sem pressão e, finalmente, sem dor.
Foto/CANVA