A congada
Márcio Zago
Com mais de dois séculos de existência, resistência e muita resiliência as congadas de Atibaia remontam os tristes tempos da escravidão.João Batista Conti no livro Atibaia Folclórica escreveu: “Era hábitoentre os senhores conceder aos escravos um dia de festa para celebrarem a coroação do Rei de Congo, festa que eles faziam coincidir e confundir com a católica dos Três Reis”. A congada, como manifestação sincrética, nunca foi totalmente aceita, nempor parte da oficialidade religiosa, nem por parte da elite local. Já em 1907, num belo artigo publicado no jornal O Atibaiense, o Doutor Afonso de Carvalhoescreveu: “O Padre Abel, todo mundo o sabia, implicava com frequência nas festas religiosas, tornadas então quase profanas com a supremacia e intervenção da Congada, cujo prestígio atingia o seu auge”.
O texto era referente ao ano de 1890, quando o Padre Abel Alves Barroso iniciava suas atividades como pároco na cidade. Essa postura refletia nas noticias sobre as Festasdo Rosáriopublicadas nas duas primeiras décadas do século XX onde, muitas vezes, era omitida a participação das congadas, priorizando os atos litúrgicos da igreja.
Além dos religiosos, parte da elite local também menosprezavaas congadas ao associá-laàs constantes alterações da ordem pública, que ocorriam durante os festejos. Pior, quando associavam a manifestação ao atraso, como neste artigo: “(…) Em pouco tempo os próprios pretos e seus descendentes terão vergonha do papel triste e tonto que representam com suas congadas; envergonhar-se-ão do papel de vice-rei com a capinha de chita e paninhos, as fitas trançadas em seus chapéus, os saiotes que da sua procedência já foram a muito abolidas…, os dançantes que foram puras invenções dos jesuítas primitivos, que nestas terras muito suores dos crentes aproveitaram.
Em pouco tempo surgirá com a instrução e a indústria a nova aurora da nova geração que destruirão de uma vez, calçando as trevas para surgir à verdadeira luz que é a Civilização”. Texto de puro preconceito e ignorância! Mas para o povo em geral a congada gozava de grande aceitação e respeito.
As informações sobre esta manifestação vinham das crônicas, com citações aqui e ali de como se davam sua participação nas Festas do Rosário. Como estade 1902: “Diversas e bem organizadas turmas dos tradicionais congos faziam vibrar os ares, espalhando sonoras ondulações desses cantos, ora tristes, ora alegres, que despertam n’alma saudades indefiníveis”. Ou então em outro artigo de 1905 onde a chuva era descrita como companheira constante das Festas do Rosário: “(…) Durante toda a semana as chuvas caíram torrencialmente, numa constância intérmina e implacável! A cavalhada nenhum luzimento pode apresentar; e as congadas, percorrendo toda a cidade, só se encharcavam em água e lama”. Nessa época a força e a expressividade das congadas de Atibaia já se fazia notar para fora dos limites locais.
Em 1915, um grupo de quarenta integrantes, divididos em terno rosa e terno azul,participaram de uma exibição no Velódromo Paulista, em São Paulo. Eles foram dirigidos pelos Senhores Floriano Cintra e Caetano Avelino da Silveira, ou Caetano das Pedras, como era conhecido. Caetano das Pedras foi um importante líder da comunidade congadeira da época. Filho de africanos escravizados, o mestre violeiro num depoimento concedido a João Batista Conti, na década de cinquenta, assim descreveu a origem das congadas: “Diziam os antigos, e é por conta deles porque eu não vi, que, quando nasceu o menino Jesus, na Terra Santa, havia três reis:um branco, um preto e um caboclo.
Os reis branco, querendo lograr o preto disseram que para ver o Menino Jesus era preciso dar uma volta muito grande e ensinaram um caminho errado pro negro ficar logrado. E assim foram os três vê o Senhor Menino. Mais o preto pegou o caminho errado.
Quando os brancos chegaram na cachoeira onde tava o Menino Jesus deram com o preto já na frente do Menino Jesus, que entonces o Senhor Menino pegô uma coroa, pois na cabeça do rei preto e disse: Vassuncê é o rei dos congos. Foi entonces que o preto foi chamá uma porção de negros e vieram dançá na frente do Menino, daí em diante ficô a congada. E é por isso que os reis da congada leva coroa na cabeça, branco não pode”. Linda história que denota a fé e a inteligência do povo negro aoressignificar simbolicamente a triste realidade a que eram submetidos.
* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.