Tá passada?
Ainda há capacidade de perplexidade em cada um de nós ou já nos habituamos à barbárie?
Por Anna Luiza Calixto
514 mil óbitos (potencialmente evitáveis, em boa parte dos casos) por Covid-19. Ritmo lento nacionalmente no que concerne à vacinação. Um assassino em série e estuprador cruel é morto e levanta-se a suspeita de que ele atuava a mando de lideranças do agronegócio brasileiro. Uma mulher é estuprada na parte traseira de uma viatura por dois policiais e a sentença judicial – assinada, não surpreendentemente, por um homem – diz que ela “poderia ter resistido, mas não o fez”. Múltiplos e-mail da Pfizer desconsiderados pelo mais alto escalão do executivo federal brasileiro. Tá passada? Eu poderia continuar, mas vou poupar o seu sábado.
Tenho, particularmente, exercido certo esforço para reativar a memória daqueles e daquelas com os quais convivo no que diz respeito ao que está acontecendo no nosso país. Caso contrário, permanecemos publicando nossas selfies, posamos de positive vibese expurgamos tais notícias como se elas, impressas ou em pixels, traduzissem-se em ondas de negatividade que em nada nos servem. Acontece que servem sim, porque são capazes de nos lembrar do cenário em que desenvolvemos nossos tempos e desenrolamos o novelo da história.
“O assento mais quente do inferno está reservado àqueles que, nos tempos de crise, optaram pela indiferença” – esta inscrição está perfurada no inferno de Dante Alighieri, evidenciando o desvio moral de quem exime-se de posicionamento em tempos caóticos, o que hoje transcrevemos como “nada de ficar em cima do muro”.
Para quem ficou nesta Coluna e, com isto, arriscou a positividade absoluta do seu final de semana, devo alertar que, a cada hora, temos três crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Sim, temos. Porque toda criança é nossa criança e temos responsabilidade civil sobre cada menino e menina brasileira. Não tão somente isto, mas há 1.8 milhão de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil; as terras indígenas estão em chamas e as mulheres estão sendo violentadas, mais do que na média histórica, durante a pandemia.
“É preciso estar atento e forte.” – não é implausível dizer que, no momento em que escrevo a vocês, a política – ou, devemos dizer, necropolítica – nacional de enfrentamento às desigualdades sociais é, via de regra, mais letal que o próprio vírus. As pessoas estão morrendo de fome, quando não cometendo suicídio devido à precarização da saúde mental brasileira. O desemprego sobe pelas paredes e a intolerância vaza em áudios de WhatsApp racistas contra jovens brasileiras. Enquanto isto, estamos compartilhando vídeos engraçados e memes sobre um serial killer. Estamos perdendo a graça.
O objetivo aqui não é condenar nenhum de vocês a um muro de lamentações no qual se penduram manchetes deploráveis, mas dedicar este texto para colocar em perspectiva a desumanização em que nos situamos. Por menos minutos de silêncio, porque já nos calamos por tempo demais. Por mais encontros de, como nos ensinou Paulo Freire, organização da nossa esperança. Articular o nosso berro e converter nosso luto em luta e nossa tristeza em mola propulsora para avanção.
Propor e resistir é nadar contra a corrente sem patinar. Pondo em sua devida proporção o caos e, não obstante, não cedendo à apatia. É preciso reunir esforços, para além do clichê, e entender o sangue que escorre das páginas dos jornais quando torcemos as notícias. “Vamos celebrar a estupidez humana?” Assassinatos, estupros, assaltos, tráfico de drogas, desaparecimento de crianças… Nada disto nos faz ser quem somos como coletividade, mas diz muito sobre quem cada um é, subjetivamente, no seu silêncio ensurdecedor que, com sinceridade e lucidez, não poderia nos deixar dormir. Por si mesmo, devia tornar o repouso da nossa tessitura social impossível enquanto a barbárie prevalecer. Os bons são maioria, ainda bem. O problema é uma maioria silenciosa e, lamentavelmente, uma minoria barulhenta e perversa.