Por dentro do buraco da fechadura
O privado é político e as quatro paredes não pertencem apenas a quem as habita.
“O privado é político” – assim, o movimento feminista, contemporaneamente à obra aqui discutida, aponta a inserção do contexto particular e intrafamiliar na arena política, que até então resumia-se à vida social pública. Em outros termos, o movimento, assim como Corbin, ao ilustrar a vida privada no período da Monarquia de Julho (1830 à 1848), traz a realidade interior às quatro paredes dos lares europeus para o centro da análise social.
A sociedade europeia, que reestabelecia suas práticas e dinâmica urbana após a queda do antigo regime, a aristocracia, redescobre o eu. O século dezenove inscreve a herança histórica que confere importância social à privacidade, sendo marcado pela expansão da liberdade individual e a possibilidade de desenvolvimento da personalidade particular, processos que se manifestam, por exemplo, na recusa quase inédita de levar adiante múltiplas gerações de sobrenomes que, anteriormente, exerciam papel fundamental na inscrição do indivíduo na vida pública tradicional. Nas palavras de Alain Corbin, “o enfraquecimento das regras de transmissão familiar traduz o definhar das virtudes hereditárias (…)” (CORBIN, 1991, p. 419).
Para além da ruptura nominal, o cidadão burguês, a partir do advento do retrato instantâneo, explora recursos para a constituição visual do eu e inaugura a práticade retratar-se isolado dos antepassados, diferenciando-se dos aristocratas: ele figura só, descobrindo poses e, posteriormente, fazendo usodo retoque nas fotografias para fortalecer sua autoimagem. O burguês pós revolução francesa não deseja performar como o elo de suas virtudes hereditárias, mas inscrever sua própria linhagem. Citando Corbin: “Ascender à representação e posse de sua própria imagem é algo que instiga o sentimento de autoestima, que democratiza o desejo do atestado social. Os fotógrafos o percebem muitíssimo bem.”(CORBIN, 1991, p. 425).
Para Corbin, “a contemplação de sua própria imagem cessa aos poucos de constituir um privilégio.”(CORBIN, 1991, p. 421) O espelho chega às mãos das mulheres, quase como um objeto de natureza mítica, carregado de superstições. O historiador francês pontua que as aldeias preteriam o espelho de corpo inteiro, por representar um potencial erótico que rompia com o código de boas maneiras e, por esta razão, os bordéis são pioneiros em instalar o misterioso objeto reflexivo que chegaria tardiamente ao ambiente domiciliar, em que a observação feminina de seu próprio corpo nu era uma manifestação de promiscuidade mesmo que através dos reflexos de sua banheira (CORBIN, 1991, p. 423). Também é o espelho de corpo inteiro que postula o padrão de beleza esbelto, estereotipando a figura central para a ditatura da beleza. A persona femininaé, historicamente, alvo da inspeção pública, que controla sua silhueta, seus pensamentos e tentações, o que veste e o que vê. A mulher burguesa tem seu corpo velado de maneira muito mais acentuada que na aristocracia, a exemplo daSra. Gradgrind, em Tempos Difíceisdo romancista inglês Charles Dickens, personificandoa caricatura da esposa vítima de abusos psicológicos e repressão em seumatrimônio. Citando Corbin, “no século XIX, o pudor e a vergonha pretendem reger os comportamentos.”(CORBIN, 1991, 450).
Pressupõe-se, a partir do exemplo mencionado, que há uma contrapartida à expansão do indivíduo como personagem histórico europeu. No reverso da chave da latrina; dos diários que traduziam as ambições particulares; das tumbas individuais e epitáfios personalizados; dos diplomas encadernados; da possibilidade que se abre aos pobres de endomingar-se e conhecerem seus próprios antepassados através do retrato; da cama individual – ruptura de natureza sanitária – e dos cartões postais; há a inspeção autorizada deste sujeito social inédito.
Ao passo que o indivíduo se liberta, aprisiona-se. A emersão de uma burguesia que contraria as servidões do lar, move as estruturas de controle do Estado e de expansão de seu poderio, que também passa a transitar do macro para o micro.
“O direito se atrasa em relação aos fatos” – as aspas são assinadas por Michelle Perrot, historiadora francesa que prefacia “A História da Vida Privada” e aponta o exame afinco do indivíduo responsável pela papelada, nascitura deste período, antecedendo os atuais procedimentos de identificação cidadã e burocratizando a relação sujeito-Estado. Erguem-se as cortinas e a vida privada passa a constituir a nova história, narrada de dentro para fora do “buraco da fechadura” (PERROT, 1991, p.10) que, com o prejuízo da origem francesa da palavra – e, possivelmente, da prática – do voyeurismo, torna-se uma pauta política.