12 de Junho: como a luta contra as violações de direitos poderia ter salvado a vida do menino Miguel?

 

As lacunas da rede de proteção à criança neste Dia Mundial da Luta contra o Trabalho Infantil.

por Anna Luiza Calixto

Nos mais diversos espectros da violência, meninos e meninas brasileiros têm sua mão de obra explorada na cadeia produtiva da atividade laboral precoce e, no entanto, o público infantojuvenil não é estimulado a fazer parte das articulações do sistema de garantia de direitos pela erradicação desta violação. Neste 12 de Junho, celebraremos o Dia Mundial da Luta contra o Trabalho Infantil enquanto 2.7 milhões de meninos e meninas brasileiras têm sua mão de obra explorada por um sistema perverso de necroliberalismo que só se preocupa com a produtividade.
Em quase doze anos de trajetória como ativista, seria bastante aprazível poder dizer que, ao combatermos o trabalho infantil, lutamos apenas contra uma violência (como se fosse possível usar a palavra apenas antes de outra como violência). Mas esta não é a (dura) realidade que enfrentamos diretamente em nossas articulações com ações estratégicas pelo fim à atividade laboral precoce.
Ao lutar contra o trabalho infantil, na verdade, caminhamos também contra um discurso de ódio e uma cultura adultocêntrica que não compreende a real importância da prioridade absoluta que devemos à infância brasileira como forma de restabelecer os seus direitos, violados historicamente.
Em sua expressiva maioria, as crianças nunca tinham ouvido a respeito da possibilidade de sua participação como ferramenta no combate ao trabalho infantil; de serem ouvidas na construção de políticas públicas pautadas na infância ou sobre vários dos canais de denúncia que apresentamos a elas.
Afinal, estamos prontos ou não para a luta contra o trabalho infantil? Até onde vai a percepção da infância como um estado transitório de vir a ser adulto? O futuro de uma nação que nos espera crescer para compreender o peso de nossas vozes, a importância de cada uma delas?
Para lembrar as vidas de crianças como Miguel, mutiladas e ceifadas pelas classes dominantes e pelo Estado opressor, a cada palestra do Projeto Os Cinco Passos, lemos juntos, todos e todas, os nomes e idades de cada menino e menina brasileira que perdemos para tamanha perversidade. Dia após dia, a lista se tornava maior e mais dolorosa. Passou da hora de escrevermos nela um ponto final.
Uma criança de cinco anos procurando por sua mãe. Miguel não era uma criança trabalhadora precoce, mas foi vítima da opressão de um sistema que interpreta a atividade de empregadas domésticas como essencial mesmo em meio a uma pandemia. Não há nada que eu possa dizer ou escrever, nada será suficiente. Este é o retrato mais cru, pintado a sangue, de uma sociedade adultocêntrica alicerçada na supremacia branca genocida, cujas crises sempre caem no colo do mais vulnerável. Miguel caiu.
Nós, rede de proteção, não estávamos lá pra sustentar sua queda e apontar o caminho para sua mãe – que não estava no nono andar de um prédio luxuoso. A vida do Miguel não cabe em nenhuma lista e também não vai caber aqui. A vida do Miguel não vale vinte mil reais e uma manchete de jornal.
Não podemos mudar de assunto. O extermínio da infância, adolescência e juventude preta e periférica no Brasil deve estar na ordem do dia de todos os dias. Deve ser pauta de políticas públicas, para além de hashtags. Deve ser denunciado e erradicado. Miguel estaria vivo se não fosse o filho da empregada doméstica. E como sua mãe denunciou: se o oposto se fizesse verdade, ela não teria direito à fiança.
Também não caberá aqui a dor desta mãe. Oprimida por um sistema necroliberal que entende o seu serviço mal remunerado como essencial e a expõe à vulnerabilidade de sua saúde e ao potencial risco, como ficou provado, do bem estar do Miguel, de sua vida.
Toda criança é nossa criança. Cada uma das que perdemos. Miguel caiu das nossas mãos, hoje manchadas de sangue. Nosso discurso sobre a prioridade absoluta não impediu a patroa que fazia as unhas de colocar uma criança de cinco anos sozinha em um elevador e apertar o botão para o andar mais alto. A doutrina da proteção integral não salvou Miguel. Precisamos salvar.
A criança brasileira nos convida a fazer jus ao símbolo internacional – concebido em território brasileiro – da luta contra o trabalho infantil: o catavento, em sua sinergia, o movimento, a mistura de cores e o constante olhar para o centro, ponto que une as cinco hélices. Quem une as nossas trajetórias de luta – o nosso ponto, o que dá sentido à dura e diária caminhada – são nossas crianças e adolescentes.