Por onde anda nossa Mãe gentil?
Pelo solo da pátria amada, milhões de filhos que não fogem à luta, mas trabalham sobre pés descalços.
Anna Luiza Calixto
Para muito além das páginas do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069 | 1990), 2,7 milhões de crianças e adolescentes têm o trabalho infantil em suas unhas sujas de graxa, em seus pés feridos e olhos cansados (PNAD | 2015). Dessemelhantemente de nós, que carregamos a luta contra o trabalho infantil como uma bandeira, nossos meninos e meninas brasileiras carregam-na como uma cruz. O embate acadêmico, teórico, institucional e frasal contrário à atividade laboral precoce é tão somente a formulação de teses que testam hipóteses e buscam reconstituir a cólera das violações de direitos tendo em base evidências históricas e relatos que apenas ilustram a violência, mas não sangram por ela.
Nossa militância contra o trabalho infantil é um ato político em tempos de tamanha perversidade, persistindo contra o apagamento histórico da figura da criança e do adolescente enquanto sujeitos de direitos e personagens protagônicos em contextos culturais que ditam relações sociais contemporâneas. Não obstante, seria incoerente considerar tal prática, mesmo que revolucionária, equivalente à vivência das violências, circunstância sequer cabível em nosso discurso. Tal realidade só cabe nas mãos das vítimas do trabalho precoce – elas é que sabem o seu peso.
Nos mais plurais espectros da violência, meninos e meninas brasileiros têm sua mão de obra explorada na cadeia produtiva da atividade laboral precoce e, no entanto, o público infantojuvenil não é estimulado a compor as articulações do sistema de garantia de direitos pela erradicação desta violência, presente nas camadas sociais alvo de maior vulnerabilidade e, não raro, menor visibilidade nas políticas de geração de renda, assistência e desenvolvimento populacional. Tal visibilidade não raro é direcionada apenas em caráter eleitoreiro e assistencialista, prática que tende a perpetuar ciclos de miséria e fome, bem como corrobora para a hereditariedade viciosa do trabalho infantil.
Em quase doze anos de caminhada como ativista pelos direitos da infância, seria razoavelmente aprazível poder dizer que, ao combatermos o trabalho infantil, lutamos apenas contra uma violência (como se fosse possível usar a palavra apenas antes de outra como violência). Mas esta não é a – dura – realidade com a qual esbarramos em nossas articulações e ações estratégicas pelo fim à atividade laboral precoce nos territórios e entidades de atendimento.
Ao lutar contra o trabalho infantil, indubitavelmente, nadamos também contra um discurso de ódio e uma cultura adultocêntrica que não compreende a real importância da prioridade absoluta que devemos à infância brasileira como forma de restabelecer os seus direitos, violados historicamente, não obstante corrobora para a deslegitimação do discurso de nossos pares neste grupo etário e inviabiliza sua participação pró ativa nos espaços de garantia de direitos e controle social, oferecendo a eles e a elas o protagonismo decorativo, outrora postulado por Antônio Carlos Gomes da Costa como a prática de envolver a criança e o adolescente alegoricamente, como quem preenche um critério, mas não lhe amplia o direito à voz e à decisão coletiva sobre ações que inferem diretamente em seu contexto, potencialmente violando seus direitos elementares.
Ao passo que todo o circuito da rede protetiva e os fluxogramas de atendimento do sistema de garantia de direitos são pensados em nome da infância, os mesmos são inacessíveis (metodológica, prática e dialeticamente) a ela. Até onde vai a percepção da infância como um perene estado transitório de vir a ser adulto? O futuro de uma nação que nos espera crescer para compreender o peso e a importância denossas vozes?
Não proteger a infância é condenar o futuro. Toda criança é nossa criança. A operária, a escravizada, a explorada, a violada, a abandonada, a esquecida, a violentada, a oprimida. Quem não denuncia, também violenta. Quem não se levanta contra o ódio, está sentado sobre a injustiça. Dante Alighieri: No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise.
E não há nada mais coerente com a participação sócio política pró ativa – não decorativa – de crianças e adolescentes do que todas as hélices que se movimentam e, portanto, todos os sujeitos que lutam, voltarem-se para o foco da luta, a pauta central desta proposição: nossas crianças e adolescentes. É necessário pautar que o sujeito de direitos não é aquele que tem, apenas, os seus direitos assistidos, mas, sobretudo, aquele que assiste aos seus direitos.