A infância Krahô e a natureza como território do brincar
Precisamos deixar que nossos filhos se reconectem à natureza ou eles não terão razões para protegê-la.
Por Maíra Lopes Pedroso*
Em 2019 a Semana Mundial do Brincar celebrou o tema: “O brincar que abraça a diferença” e por isso me senti convidada a partilhar um pouco sobre a brincadeira na cultura do povo Krahô. É na brincadeira que o universo das crianças Krahô se encontra com o universo das outras crianças do mundo. Brincar é uma linguagem universal e o povo Krahô se expressa muito bem através dela. O jeito brincalhão dos Krahô abre infinitos espaços para que o outro possa chegar, se misturar e brincar também, é assim que eles vão conquistando amigos mundo a fora.
No cotidiano da aldeia as crianças brincam livremente.Sem a presença dos adultos elas conhecem o mundo através de suas próprias experiências. Elas se inspiram na natureza e nas atividades da aldeia para criar as mais diferentes brincadeiras. Em dia de festa, enquanto os adultos preparam o paparuto (comida tradicional feita a base de mandioca e carne e, assada embaixo da terra na palha da bananeira), as crianças aproveitam os talos das folhas de bananeira para brincar. Quando as mulheres ralam o jenipapo para fazer a tintura corporal, os cascos da fruta são o brinquedo do dia. Enquanto a comunidade fazia um mutirão para construir minha primeira casa na aldeia, as crianças pegavam tabocas e panos e com isso construíam casinhas para brincar. Galhos, folhas, flores, pedras, tocos, palha, panos, sucata…tudo pode virar um brinquedo novo! A conexão com a natureza se inicia para as crianças Krahô através do brincar. Os quatro elementos da natureza podem ser percebidos em todas as brincadeiras, mesmo quando elas usam algum brinquedo industrial.
As crianças brincam juntas sem divisão etária, as pequenas se inspiram no que fazem as maiores e assim exploram os limites do próprio corpo. As maiores por sua vez são responsáveis por cuidar do bem estar das menores, pegam frutas no topo das árvores, cuidam para que elas não se machuquem. A brincadeira faz parte do cotidiano da aldeia. Não conheço som mais bonito que o riso das crianças Krahô, brincando em volta das fogueiras nas noites de lua cheia.
Mas na cultura Krahô, a brincadeira não é território só das crianças. Todos brincam à seu modo. A brincadeira faz parte de diversos rituais, rir é algo pra ser levado tão a sério que existe na cultura Krahô, pessoas que tem como principal função social provocar o riso. As pessoas que recebem um nome de Hôtxwa, palhaço tradicional oriundo da abóbora, tem na Festa da Batata um destaque especial, quando se apresentam ao redor da fogueira, mas no cotidiano eles também são muito importantes pra manter o bem viver da comunidade. Nas palavras de uma anciã Krahô : “O hôtxwa resolve tudo, você pode estar zangado que ele faz graça. Você sorri e muda de opinião”.
As culturas indígenas, de modo geral, valorizam o equilíbrio da vida e o bem viver de todos os seres. Fazem isso porque conhecem a natureza em sua profundidade, uma vez que desde sempre estão brincando com ela, tocando em sua essência,conhecendo seus ciclos de vida e morte. Nós desejamos que nossos filhos amem e protejam a natureza, mas como disse o filósofo e teólogo Santo Agostinho, só se ama aquilo que se conhece. Precisamos deixar que nossos filhos se reconectem à natureza ou eles não terão razões para cuidar dela.
Se você ficou interessado em conhecer mais sobre as brincadeiras dos Krahô amanhã no site do jornal você poderá assistirà um video que fizemos especialmente para a semana do brincar.
*Maíra é formada em Ciências Sociais, é professora e indigenista. Natural de Atibaia, vive e trabalha com o povo Krahô há 8 anos. A terra Indígena Krahô fica no norte do estado do Tocantins, entre as cidades de Itacajá é Goiatins.