“Histórias para quem dormir?”
O trabalho do movimento Atreva-se na desconstrução dos contos de fadas com que crescemos.
Anna Luiza Calixto
Revisitar os contos de fadas que marcaram nossas infâncias é uma experiência quase freudiana: o quanto a Bela e a Fera nos dizem sobre cárcere privado e o sequestro de uma mulher para garantir a sobrevivência de seu pai? Já parou pra pensar na naturalização da rivalidade feminina e no quanto ela é gestada na relação de Cinderela com suas meio-irmãs? O que dizer então sobre Branca de Neve, beijada por um completo desconhecido enquanto estava teoricamente morta? Agora o meu preferido: a sereia Ariel e uma vida LITERALMENTE sem sua voz para conquistar o amor de um homem que ela viu uma vez na vida, enquanto a bruxa Úrsula diz: “mas quem precisa de voz quando se tem quadris?”.
Você pode julgar esse olhar crítico como exagerado e cultivar o pensamento de que há ingenuidade na construção (sempre patriarcal) das narrativas dos contos de fadas, mas – para a nossa sorte e privilégio – o movimento Atreva-se discorda disso. Nicole Aun e Alessandra Rodrigues escreveram o primor de livro “Histórias para quem dormir?”, propondo um despertar coletivo através da exposição dos horrores incrustados nos castelos e bailes da Disney Pictures.
As narrativas propostas pelos contos de fadas rendem as meninas, sempre elas, a um espectro de anulação pessoal em nome do tal do amor verdadeiro como único caminho possível para o felizes para sempre. Nessa cristalização irreal não há espaço para a potência feminina e crescemos assistindo em looping essas produções constituindo um imaginário que acolhe a violência da Fera e a maçã envenenada da bruxa como paisagens necessárias para a narrativa da princesa incapaz de salvar a si mesma, sempre dependendo de alguém (esse alguém sempre um homem branco) que escale sua torre, resgate-a da masmorra, beije seus lábios e puxe-a para a garupa do cavalo.
Mais recentemente, há produções como Moana, Frozen e Valente que se adequam à possibilidade da vivência não romântica do protagonismo feminino, mas há sempre um pano de fundo mais amplo que afasta as meninas da conquista do seu espaço sem a presença nefasta do medo de falar alto, opinar, discordar e se opor às sujeições diárias do patriarcado.
Crianças merecem crescer acreditando na sua potência, sejam elas meninas ou meninos. Enquanto os meninos brincarem de salvar o mundo ao passo que as meninas escolhem a cor de esmalte que é a tendência da estação, haverá desigualdade. Essa constituição de infância não é aleatória, mas cautelosamente costurada pelas estruturas de poder que se beneficiam da manutenção dos moldes vigentes; da naturalização do “eu falo e você obedece”. Afinal, qual armadilha mais oportuna do que convencer o oprimido a desejar os meios que perpetuam sua opressão porque, por trás deles, pode haver um felizes para sempre?