Ler para crianças – o poder da literatura infantil na prevenção à violência sexual

Quem tem medo de um livro que previne violências contra crianças?

Anna Luiza Calixto

Eu tenho muito orgulho de escrever para crianças e, como alguém que também está no meio acadêmico, posso te assegurar que é tão desafiador quanto publicar um artigo nas normas da ABNT, ainda mais quando o fazer literário envolve mais do que criatividade, mas a responsabilidade social no enfrentamento às violações de direitos de meninos e meninas que talvez nem entendam que o que eles estão sofrendo tem nome e é crime.
Por esse e tantos outros motivos, existe uma comunidade muito potente de escritoras e escritores infantis que se debruçam sobre a realidade das violências contra crianças e adolescentes e buscam metáforas literárias e licenças poéticas para criar personagens e universos nos livros que sejam capazes de libertar as crianças de tanta angústia.
Mais do que escrever histórias como essas, eu também carrego a enorme responsabilidade de contar a história dos meus livros em escolas, projetos sociais, serviços de convivência e fortalecimento de vínculos e comunidades em que vivem crianças. Assim, tenho a oportunidade de ler nos olhos dos meus leitores e ouvintes a descoberta de que aquilo que está acontecendo em suas casas não tem nada de normal e se chama violência, mesmo que o papai e a mamãe digam que é pro meu próprio bem ou chamem aquilo de carinho, cosquinha ou brincadeira.
As ilustrações também exercem um papel fundamental nessa dinâmica, pois retratam tudo aquilo que as palavras não conseguem dizer através do rostinho dos personagens; jogos de luz e sombra e lances de cores. Os meus livros sobre violência sexual; bullying e trabalho infantil são ilustrados pela maravilhosa Stephanie Marino e construímos juntas a identidade de cada projeto. Quando você abre um livro infantil, pode ter certeza de que cada nuance ali é pensada para impactar o leitor de alguma forma.
É o que construímos com o livro Bem me quer, mal me quer?, manual prático de prevenção, orientação e enfrentamento contra a violência sexual contra crianças e adolescentes, que recebeu em 2022 o Prêmio Neide Castanha na categoria de Produção de Conhecimentos. O livro, que nasceu em 2020 em decorrência da pandemia de Covid-19, conta em primeira pessoa a história de uma menina brasileira que, dona da palavra, compartilha com as crianças sobre as visitas que recebia à noite do monstro da cosquinha e os leitores acompanham seu itinerário de descobertas sobre si e o mundo, conhecendo o Disque 100 e o Conselho Tutelar a partir do momento em que é revelado que quem toca nela durante seu sono é o namorado da mamãe.
Além da Cartilha, existem muitos materiais lúdicos incríveis que recomendo de olhos fechados para diferentes faixas etárias. Pipo e Fifi, Não me toca, seu boboca!, A menina das cores, Leila e O segredo de Tartaninasão alguns deles. Muitos deles estão disponíveis em PDF gratuito também pela internet.
Quando você abre um livro como esse para uma criança, conduzindo sua leitura, você também está assumindo seu papel como mediador desse menino ou menina no seu mergulho no mundo. A hora da história se torna um lugar reservado na correria do cotidiano para que a criança com quem você convive possa tirar suas dúvidas e referenciar você como um porto para onde ela sempre pode voltar e pedir ajuda. Assim podemos falar não só sobre violência sexual, mas sobre qualquer perigo do planeta.
Já presenciei leituras interativas em que, ao final da contação, a criança queria contar o que estava sofrendo para o fantoche, pois na sua visão só mesmo ele que já tinha passado por aquilo seria capaz de entender. Por isso é a cada dia mais importante levar materiais literários de referência para as salas de aula, porque muitas famílias ainda carregam um olhar reacionário e conservador que fecha as portas para qualquer discussão sobre os direitos das crianças e isso também é fruto da coisificação da infância.
Muitos de nós adultos subestimamos a capacidade de compreensão da criança sobre o mundo e menosprezamos a potência de 15 minutos de conversa com elas antes de dormirem, utilizando uma narrativa literária como mola propulsora da conversa. Às vezes é nas dificuldades do personagem que a criança se reconhece e é tomada pela coragem de pedir ajuda a quem a ama.
É no mundo daquele personagem que a criança liberta a própria imaginação e assim a gente consegue perceber para onde caminha o seu imaginário. Assim como no brincar. Quantas crianças eu conheço que não conseguem construir uma história livre sem que haja nela violência física, armas ou problemas familiares… O repertório criativo das crianças revela muito sobre seu contexto no mundo.