Maioridade do carro flex e responsabilidade ambiental

O impacto positivo é inconteste. Dentre outras qualidades ambientais e à saúde, o etanol gera emissão zero de material particulado.
João Guilherme Sabino Ometto*

Há dezoito anos, em 24 de março de 2003, era apresentado o automóvel flex, uma revolucionária tecnologia brasileira que, pela primeira vez no mundo, possibilitava o abastecimento de um veículo com etanol, gasolina ou a mistura de ambos em qualquer proporção. Hoje, mais de 85% da frota nacional conta com esse tipo de motor, cuja contribuição é imensa para a redução das emissões de poluentes locais e de gases de efeito estufa, com benefícios significativos para a saúde e a luta contra as mudanças climáticas.O carro flex atinge sua maioridade sendo responsável. Sim, ambientalmente responsável, como se pode comprovar com clareza nos índices de poluição da capital paulista nas últimas duas décadas. Dados sobre o consumo de combustíveis divulgados pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) mostram que em 2020, considerando o anidro misturado à gasolina, e o hidratado utilizado nos motores, o etanol substituiu 47% de toda a gasolina consumida no Brasil; em São Paulo, a substituição foi de 64%. Estes índices, inigualados em todo o mundo, são resultado da opção dos consumidores propiciada pela tecnologia do carro flex.

O impacto positivo é inconteste. Dentre outras qualidades ambientais e à saúde, o etanol gera emissão zero de material particulado. O resultado é que, segundo especialistas do Conselho Superior do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), em 2000 registravam-se na capital paulista 60 microgramas de partículas por metro cúbico de ar; hoje, são 19, abaixo do índice de 20 recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Cabe salientar que, nesses 20 anos, a frota existente no município cresceu 80%. Fica muito claro como o etanol, somado à disruptiva tecnologia criada pela engenharia automotiva desenvolvida no Brasil, contribui de modo significativo para que tenhamos um ar muito mais limpo, o que é de especial importância nesses tempos de pandemia causada pelo Covid-19.
A resposta do País à época do encarecimento do petróleo provocado pelos conflitos no Oriente Médio, em especial a Segunda Guerra do Golfo Pérsico em 2003, tornou-se de modo paulatino uma solução de caráter ecológico. Essa história, a rigor, havia começado muito antes, há 46 anos, quando, em novembro de 1975, foi criado o Programa Nacional do Álcool (Proálcool), também como alternativa à majoração do combustível fóssil no mercado global.

Começamos a produzir veículos motivos a álcool, tecnologia também genuinamente nossa, e a construir uma infraestrutura nacional de abastecimento com a multiplicação de usinas produtoras, em especial no Sudeste e Centro-Oeste, e uma rede nacional de postos de distribuição. Hoje, temos mais de 42 mil pontos de abastecimento em todo o nosso continental território, onde se pode abastecer os veículos com etanol.

A história do Proálcool, do carro a álcool, dos emblemáticos 18 anos do flex, a base nacional de fabricação dos veículos, de produção e distribuição dessa moderna, limpa e renovável fonte de energia para transporte não tem apenas grande valor histórico, e não se constitui somente em referência de um processo dinâmico que gerou desenvolvimento, investimentos, empregos e renda. Representa, agora, o alicerce de uma nova frente de combate ao aquecimento da Terra.

Para se entender melhor essa questão, é importante conhecer algo até agora pouco difundido: na comparação entre o carro a etanol brasileiro e o elétrico a bateria, considerando a avaliação do ciclo de vida desde a produção da energia até o seu uso pelo consumidor final, o nível de emissão de gases causadores do efeito estufa é muito menor para a motorização usando etanol.

Isso porque, para se aferir o grau efetivo de emissão gerada por um veículo, é necessário considerar o ciclo completo de emissões totais. Aí está a vantagem da motorização usando o etanol, pois, é quase neutro em emissões de gases do efeito estufa, e com novas tecnologias sendo aplicadas na produção tende em breve a se tornar neutro, ou até gerar emissão negativa, em grande medida porque sua fonte é renovável e os canaviais sequestram carbono da atmosfera durante a fase de crescimento da lavoura.

As comparações são conclusivas: um carro movido a gasolina sem adição de etanol emite 145 gramas de dióxido de carbono (CO2) por quilômetro rodado; o automóvel elétrico a bateria utilizado atualmente na Europa emite 92 gramas; e um carro movido 100% a etanol emite somente 58 gramas. Além disso, a baixa emissão do etanol é propiciada com uma tecnologia acessível ao consumidor.

Agora, estamos dando mais um passo relevante, pois o etanol pode ser usado como para parceiro na eletrificação, através dos híbridos flex – uma realidade já presente em nosso País. E no futuro também na célula a combustível usando etanol. A eletrificação, com etanol, gera emissões menores ainda. Na avaliação do ciclo de vida (ACV), os híbridos a etanol emitem apenas 29 gramas de CO2 por km, e a célula a combustível usando etanol emite 27 gramas por km. Outra grande vantagem desta rota de eletrificação é que o etanol utiliza a infraestrutura de distribuição já existente. Estudo da Empresa de Planejamento Energético (EPE) indica que seriam necessários investimentos de 210 a 300 bilhões de dólares para criar uma rede de recarga de baterias (smart-grid) no Brasil.

No futuro, diferentes rotas de motorização irão conviver no mercado. Mas, a sinergia entre a indústria automobilística e o setor sucroenergético brasileiro, que possibilitou todos os avanços até agora verificados desde o carro a álcool, segue decisiva para que o etanol e a tecnologia a ele agregada sejam amplamente utilizados como solução correta, escalável e replicável para a mobilidade sustentável do planeta.

*João Guilherme Sabino Ometto é engenheiro (Escola de Engenharia de São Carlos – EESC/USP), empresário e membro da Academia Nacional de Agricultura (ANA).