Luta: substantivo feminino

Ao passo que celebramos a semana internacional da mulher, perdemos uma de nós a cada sete horas. Rosas para quem quando o vermelho que assistimos é o de mais uma sangrando pelas mãos de quem mais confia?

Anna Luiza Calixto

 

Por feminicídio, entendemos o ato infracional de matar uma mulher por motivação de gênero. Em termos mais simples, dizemos que foi morta porque é mulher. Foi atacada por ser mulher. Foi violada por ser mulher. Foi reduzida por ser mulher. Foi sentenciada por ser mulher. Não foi violentada porque o convidou para sua casa no primeiro encontro. Não ficou inconsciente porque era mais velha do que o agressor com quem mantinha um relacionamento. Não, não acordou sendo esmurrada porque o relacionamento era virtual. Não foi espancada e torturada porque usava uma roupa justa ou chamativa. Não.Foi brutalmente atacada por ser mulher. A quem rejeita tal pensamento, que não é hipotético, mas factual, convido a manter os olhos atentos para a Lei 13.104/2015, que altera o artigo 21 do Decreto Lei n°2848/40. Lei do Feminicídio. “Crime contra a mulher por razões da condição do sexo feminino.” – crime contra a mulher, com característica de extermínio, por ser mulher.
Para além da violência que vive nos lares; nos relacionamentos; nos corpos; nos hospitais; nas Delegacias de Polícia; nas ruas e no transporte público, há a violência que vive no imaginário popular, que acusa, supõe, especula e aperta os dois principais gatilhos responsáveis pela persistência da estrutura patriarcal: a naturalização da violência e a culpabilização da vítima. Falo do olhar perverso e tendencioso de quem lê tais atrocidades sob o prisma do julgamento da postura da vítima. Comentários tipicamente tecidos pelo fundamentalismo que coloca a sexualidade feminina em um patamar pecaminoso e intocável, reprovando uma mulher livre para escolher de forma tão crítica que a sentencia pela violência que sofreu.
Feminicídio não se provoca, não se motiva. O único fator responsável é a cultura patriarcal que submete mulheres diariamente à humilhação e dor, assim como leva telespectadores, ouvintes e leitores a questionar a moral da vítima antes mesmo de condenar a postura inaceitável e a brutalidade do agressor, único responsável pelo pesadelo que criou.
Perpassando a história de tantas mulheres, tantas de nós, que viveram, marcaram e, mais do que isto, fizeram a história não como a conhecemos, mas aquela que foi queimada dos livros, fui oportunizada a conhecer um novo processo de formação identitária da mulher revolucionária como uma rebelde, uma bruxa, a fêmea subversiva. Personagens de carne, osso e coragem para lutar como Hipátia, matemática e filósofa do antigo Egito que assina a invenção do astrolábio, dando o pontapé inicial no cálculo da humanidade sobre a posição do sol, da lua e das estrelas. Como Maud Stevens, artista circense norte americana que, em meados de 1.800, viajava pelo mundo como contorcionista com o corpo coberto por tatuagens. Também como Yaa Asantewaa, rainha guerreira de Gana, país africano, que encontrou os exércitos locais – compostos exclusivamente por homens – abrindo mão da batalha contra os colonizadores ingleses por medo. Diante de tais circunstâncias, Yaa liderou um mutirão de cinco mil pessoas contra os bem equipados soldados britânicos. Como Policarpa Salavarrieta, espiã revolucionária que trabalhou inarredavelmente pela libertação da Colômbia das mãos do cruel e autoritário governo espanhol. Ou Wilma Rudolph, atleta que quebrou três recordes mundiais nas Olimpíadas de 1960 após uma dura recuperação do diagnóstico de poliomielite. Como Hatshepsut, mulher que governou o Egito por vinte e cinco anos – muito antes da era de Cleópatra – e reinou por mais tempo (e com mais êxito) do que qualquer outro faraó em toda a linha do tempo egípcia. Embora ou em razão de todo o seu sucesso, a rainha teve seu nome removido dos registros históricos locais e os monumentos que a homenageavam destruídos, em uma tentativa óbvia de silenciamento e desapropriação do imprescindível papel de destaque desempenhado por ela. Como Michaela Deprince, bailarina negra nascida em Serra Leoa que cresceu em um abrigo sendo constantemente nomeada como filha do diabo pela aparência de sua pele, diagnosticada com vitiligo, infecção cutânea que causava manchas brancas em seu pescoço e peito. Subvertendo a perversidade deste discurso preconceituoso e absurdo (o que vem a dar no mesmo) a jovem foi adotada, devotou-se às aulas de balé e hoje é uma das bailarinas do Balé Nacional Holandês.
Eu poderia aqui escrever sobre Cora Coralina, Balkissa Chaibou, Evita Perón, Frida Kahlo, Yusra Mardini, Maria Sibylla Meian, Nellie Bly, Tama de Lempicka, Mae Jemison, Maria Montessori, Nancy Wake e tantas, tantas outras mulheres extraordinárias que passaram a inspirar minha caminhada como ativista por direitos humanos dos públicos mais vulneráveis. Na contramão deste movimento, estas personagens não figuram entre nosso repertório sócio cultural e precisam ser buscadas, uma vez que as tentativas de apagamento histórico a rigor persistem.
Para identificar-se como mais uma entre tantas vítimas, alvo deste processo de reversão cultural, basta se propor a um exercício de reflexão: pense em três dos maiores pintores que você conhece; os três maiores compositores; os três maiores diretores; os três maiores autores; os três maiores políticos. Dentre estes nomes, quantas mulheres você listou? Considerando que compomos metade da população mundial, devemos figurar em pelo menos metade dos itens lembrados. Se este não é o resultado inicial desta reflexão, convido ao leitor e, principalmente, à leitora para pesquisar a respeito de tantos ícones femininos e feministas responsáveis por inovações cientificas; marcos históricos; obras literárias e cinematográficas; canções populares. Ler a respeito e se apropriar destas histórias torna a emancipação feminina uma narrativa factível e não a fábula como tantas vezes é lembrada pelo imaginário popular, escrevendo por cima das linhas rasuradas pelo machismo e pelo tempo.
Por mais uma semana internacional da mulher, recebemos flores e cartões virtuais que reconhecem a força feminina, sua sensibilidade e poder maternais.Ao mesmo tempo que tantas publicações tomavam de assalto nossas redes sociais, perdemos uma mulher a cada sete horas vítima de feminicídio e mais uma foi estuprada a cada onze minutos. Em nome de cada uma delas, não faremos mais minutos de silêncio porque já nos calamos por tempo demais. O que as circunstâncias nefastas pedem é a hora do berro e, como ensinou Paulo Freire, da organização da esperança. O berro de Marielle, de Maria da Penha e de tantas outras cujos nomes são alvo de menções honrosas, mas não da justiça. Por elas, organizamos nosso berro e caminhamos juntas para que nossos passos possam ecoar e fazer com que nossas lutas sejam ouvidas e respeitadas. Somos cada uma das mulheres que sangram pela violência do machismo. Somos cada voz em desespero ao telefonar para o 180. Carregamos o peso de cada uma destas dores mas não o peso da omissão por não estender a mão e denunciar. Quem não denuncia, também violenta. A cada hora, seis mulheres como nós. Qualquer uma está a um passo da violência e a outro da denúncia. A culpa da violência nunca é do violentado. Culpa é um substantivo feminino. Mas luta também é.