A dona Maria do Jardim Paulista e a Helena da democracia radical

A dona Maria do Jardim Paulista, aqui em Atibaia, é moradora antiga e costuma coletar latinhas de cerveja para reforçar o orçamento. Na manhã de um sábado, conversei com ela na frente da minha casa. Ela me contou que é proprietária de uma casinha simples e que já foi chamada de “invasora” por vendedores de imóveis. No dia da conversa, contou que fazia 80 anos. Está forte, caminhando firme. O marido, um pouco mais velho, está limitado à cama. Perdeu um filho por questões de saúde. Reclamou do vizinho que a “denunciou” na Prefeitura por coletar latinhas, vejam só. Digna, ela não pediu ajuda. Quer viver como sempre viveu. Deu “bom dia” e seguiu pela rua, olhando as lixeiras educadamente.
Essa cena comprova que a desigualdade social na pandemia continuou gritando a plenos pulmões em nossos ouvidos. Quase fiquei surdo. Onde está a democracia, que permite uma história de corrupção, pobreza e enriquecimento de uma camada pequena da sociedade? O jornal americano The New York Times falou em “democracia radical”. Hélène Landemore, cientista política da Yale University, é quem aborda a crise da democracia e suas possíveis soluções. Defensora do conceito de democracia aberta, Landemore é crítica à atual configuração dos sistemas políticos ditos democráticos, alegando que o direito de escolha de representantes talvez não seja suficiente para garantir uma política efetivamente democrática.
Para substituir um sistema eleitoral influenciado pelo poder econômico, e sujeito a vieses e reprodução de estigmas e preconceitos inerentes à escolha humana, a cientista política sugere a real participação de membros da sociedade, selecionados aleatoriamente a partir de amostras representativas, garantindo efetiva diversidade em termos de raça, gênero, renda, grau de instrução, e outras variáveis. A fórmula pressupõe abolir a figura do político tradicional e confiar aos cidadãos o dever de guiar a política de acordo com o interesse público. O que o leitor acha?
Essas ideias estão no livro Open Democracy (Princeton University Press 2020), uma visão dessa nova forma de democracia. Hélène Landemore assessorou o Parlamento da Finlância em uma reforma com a ênfase em fazer política a partir de formato coletivo e o Parlamento francês em decisões inclusivas. Também na França, iniciou a experimentaçao de trabalhar com cidadãos selecionados randomicamente. E faz parte de um movimento chamado Democratizando o Trabalho.
A pesquisadora defende cinco princípios institucionais como as normas principais para a democracia aberta – direitos de empoderamento, deliberação, princípio majoritario, representação democrática e transparência -, que poderiam informar nosso esquema mental sobre o que a democracia significa e guiar futuras reformas institucionais. Os “cases” de processos constitucionais participativos incluem países como Irlanda, Tunísia, México e Chile, em que se pergunta: o que significa para o povo escrever, ou reescrever, seu próprio contrato social?
Seus estudos buscam responder perguntas como: qual é o papel da verdade na política? Como os eleitores formam suas crenças e adquirem conhecimento? Há condições para que democratas em minoria possam convergir na direção de consensos majoritários? Que papel deveria desempenhar o consenso nas teorias de democracia deliberativa? Como injustiças, propaganda e outras distorções da esfera pública podem afetar as propriedades da democracia?
Como o leitor percebe, é um universo novo, tanto do ponto de vista acadêmico quando sob o olhar prático. Afinal de contas, a democracia precisa mesmo de ar e renovação para se fortalecer perante as aventuras autoritárias deste século XXI.

Por Luiz Gonzaga Neto