“O Brasil está quebrado”. Não podemos fazer nada?

Na oração: “Não posso fazer nada”, o sujeito não é oculto, nem indefinido, mas irresponsável e covarde. Se a canoa virou, quem deixou ela virar? O Brasil de Bolsonaro está à deriva e não há terra à vista.

Por Anna Luiza Calixto

As presentes aspas no título desta Coluna não nos surpreendem; não são nenhuma novidade. Seu autor, o pseudo presidente da república Jair Bolsonaro, não precisaria tê-las anunciado para que chegássemos a uma conclusão parecida: o Brasil realmente caminha como um equilibrista na linha bamba do caos. Mas há muito o que Bolsonaro poderia fazer para conduzi-lo ao outro lado: renunciar, por exemplo, seria um exímio primeiro passo. Há uma potencial distância entre não poder fazer nada e simplesmente não saber o que fazer, em razão do completo desconhecimento de sua atribuição enquanto chefe de Estado e de sua evidente incapacidade de decodificar a realidade em que se inscreve enquanto suposta liderança.
Pondo em pauta que “o Brasil está quebrado”, Bolsonaro não tão somente não parece disposto a apontar qual a peça defeituosa em meio à imensa engrenagem da máquina pública, mas soa acessória para o “chefe de Estado” – aqui entre muitas aspas – a proporção que tomam suas falas em manchetes; críticas políticas e publicações em redes sociais. Pode-se especular que o uso problemático que Bolsonaro faz do microfone seja mais do que desastroso, mas proposital. Enquanto suas asneiras diplomáticas tomam espaço nas capas de jornais por todo o Brasil, os déficits econômicos do mercado nacional; os índices ascendentes de violência durante o período de distanciamento social no país; os dados dignos de um pesadelo da saúde pública brasileira e a pintura mais nua do mandato bolsonarista perdem assento. Premeditado ou não, o discurso alegórico de Bolsonaro é uma isca que vem sido bem sucedida em nos distrair do caos instalado dentro e fora de seu gabinete do ódio; de sua caricatura de nação, projetada em carne, osso, sangue e perversidade. Se a canoa virou, quem deixou ela virar?
Prova indubitável disto é que, aqui no nosso Brasil, nos nossos quintais, a barbárie corre solta. Desde a última reflexão aqui publicada, somamos mais dez mil mortes em razão da pandemia de Covid-19 no Brasil. Ao todo, 200 mil perdas irreparáveis e, mais do que isto, evitáveis através de uma administração pública responsável e fiel aos preceitos da medicina e da ciência, investindo mais do que nunca em ambas as pastas e prezando por sua máxima preciosidade: a vida da população que, durante estes duros meses de pandemia, muitas vezes lançou mão de zelar por si mesma.
Em termos de pluralidade da teia social, podemos considerar este como o cartão postal da população brasileira, cuja atual configuração política é uma democracia representativa. Com os olhos em uma sociedade como é a brasileira, evidencia-se o papel do Estado para além da ideia de representação, mas também para a organização da civilização em regras institucionais, códigos sociais silenciosamente obedecidos e construção de uma identidade nacional, um desafio tipicamente brasileiro. A título de ilustração, pode-se colocar que um quadro que põe em cena determinado episódio histórico não é aquele episódio, mas evoca sua presença por assimilação.
Por consequência, atribui-se ao voto o papel de selecionar o candidato que melhor representa os ideais de uma maioria e, assim sendo, compromete-se a levar tais reivindicações a frente de suas propostas e projetos políticos. Mas o quê, em termos práticos, leva o representante a obedecer aos interesses de seu eleitorado senão um desejo de reeleger-se pelos votos dos mesmos que lhe confiaram suas demandas? A autonomia do representante político, como é o caso de Bolsonaro, por regra de seu poder de decisão, pode afastá-lo dos princípios com os quais se comprometeu ao candidatar-se – a título de exemplo, quando Bolsonaro se compromete com o bem-estar de sua população em alto e bom som durante sua campanha, viola tal promessa ao restringir, como o fez recentemente, a produção industrial e a compra de seringas para a aplicação massificada das vacinas no Brasil (à qual já declarou sua contrariedade).
Outra faceta do princípio de representatividade política colocada à mesa no caso brasileiro é a possível insustentabilidade do nível de capacidade de gestão política dos representantes legitimamente escolhidos pela população, ao passo que esta detém o direito e o dever – ocupando os pratos de uma mesma balança, a representação – de escolher alguém capaz de representá-la, sem, não raro, ser suficientemente orientada para tanto. Se é verdade o que dizem e “cada povo tem o que merece”, que possamos fazer uso da política como um fio condutor para levar ou manter no poder aqueles e aquelas que, com responsabilidade, honestidade e competência, bem nos representam nos espelhos da cidadania.
Por dentro do buraco da fechadura da cena política brasileira, vemos cochias preocupadas e o espetáculo social ensaiando a normalidade. A democracia é um fio condutor para as reivindicações populares na arena política, tornando o povo – ou o reflexo de suas demandas – presente pelas mãos do voto, da decisão pública e, como não poderia deixar de ser, da representação. 52 mil de nossas crianças foram violentadas sexualmente no último ano. (Dados: Ministério da Saúde) Não há novo normal se nosso costumeiro normal naturaliza a mão de obra de 1.8 milhão de meninos e meninas brasileiras. (PNAD|2020) Não pode haver ordem e progresso enquanto deixamos tantos pares para trás. Pratos distintos de uma mesma balança, o voto e a participação sóciopolítica são as únicas potenciais válvulas de escapa para puxar o Brasil da linha bamba de que já falamos. Para nossa sorte ou, ao menos, utopia, “a espernaça é equilibrista” e em cada passo da corda bamba, olhamos ao redor e tomamos consciência de que não vamos sozinhos – somos beija-flores buscando apagar o incêndio que se alastra do Brasil com a água que podemos levar, lembrando que o sangue que corre em nossas veias é de luta e sua substância é, invariavelmente, cidadã e política.