Canto para Rinocerontes e Homens

A Companhia responsável pela peça, a Teatro do Osso, comemora cinco anos nas ruas e nas coxias com a exibição do espetáculo através do Festival Verão Sem Censura, da cidade de São Paulo.

Anna Luiza Calixto

 Partindo do palco nu à meia luz, Canto para Rinocerontes e Homens constrói-se em texto e música sobre este arcabouço de verdades ásperas desnudas diante da plateia disposta intimamente, como em uma arena, no Teatro Popular João Caetano. Assim, bem de perto, o público divide as três horas de espetáculo com os artistas que doam-se em corpo e sangue para o texto, cru e sentido inenarravelmente. A peça é um vivência coletiva, repartida em quatro atos, retratando à tinta, à movimento e à voz a violência institucional, o racismo, o patriarcado estrutural, a precarização da venda da força de trabalho, a homofobia sob a ótica da hétero normatividade, a rigidez das práticas educacionais, o distanciamento político, a escravidão contemporânea, a cultura do ódio e a pressão estética. A densidade das temáticas propostas não enrijece a performance artística do coletivo e não impede, vale dizer, o efeito de humor pontuado com nuances de sensibilidade e sátira em momentos escolhidos a muitas mãos, tal como o espetáculo é construído. 

A Companhia responsável pela peça, a Teatro do Osso, comemora cinco anos nas ruas e nas coxias com a exibição do espetáculo através do Festival Verão Sem Censura, da cidade de São Paulo, tendo conquistado em sua história com o público o Prêmio Aplauso Brasil na categoria de Melhor Espetáculo de Grupo e foram convidados a participar da MIT BR (Mostra Internacional de Teatro de SP). A despeito da qualidade da performance artística – em alto e bom som – em suas pautas e, de fato, demandas apresentadas em cena, o elenco preserva sua vulnerabilidade, tão necessária (eu diria emergencial) para sua entrega ao público.
Este, por sua vez, é por muitas vezes convidado a interagir com os artistas, a todos os moldes: desde perguntas direcionadas à plateia até as arquibancadas cedendo espaço para os próprios atores tomarem assento, com seu violão, salto alto, jaleco e livros. Todos e todas atuam e, ao mesmo passo, ninguém escapa à fuga do personagem, dando lugar às perspectivas e à linha do tempo de cada artista.
Canto para Rinocerontes e Homens parte do corpo de cada membro do elenco, de onde as proposições e textos partem visceralmente. A cada intervalo, a tela paralela ao palco exibe reflexões que concernem ao enredo, tocando profundamente o empirismo do cenário distópico – um quadro demográfico de pessoas transformadas em rinocerontes e em sua brutalidade (que já habitava nossos espaços e centros urbanos), deixando no planeta um único homem, o último ser humano da Terra – ali ilustrado.
Viviane Almeida, Renan Ferreira, Isadora Títto, João Victor Toledo, Guilherme Carrasco, Maria Loverra, Murillo Basso e Rubens Alexandre, dirigidos por Rogério Tarifa, incorporam em palco o sofrimento daqueles que tem violados seus direitos inarredáveis violados. Incorporam a dor das mulheres violentadas sadicamente, dos negros segregados institucionalmente e açoitados pelo preconceito, dos adolescentes criminalizados, da juventude marginalizada, das Escolas sucateadas, do trabalhador precarizado, da comunidade periférica em sua rotina extenuante e que, ainda assim, não escapa da mira das armas do estado. Incorporam a parcela expressiva da sociedade que não é conhecida como a de cidadão de bem, mas como a daqueles ali, dos menores, dos operários, dos encarcerados, dos abandonados, dos alforriados, dos bandidos. É o lado de lá da ponte: não é fotografado ou transformado em patrimônio, não é alvo de turismo, mas não escapa às visitas da polícia. Canto para Rinocerontes e Homens oportuniza a quem, partindo de um lugar confortável e privilegiado, assiste e escuta de maneira profícua as provocações que pontua em seu impacto inenarrável.
Em entrevista exclusiva ao Jornal O Atibaiense, Isadora Títto – artista da cidade que compõe o elenco do espetáculo – compartilhou que “O nosso ato-espetáculo Canto para Rinocerontes e Homens (conceito criado por Rogério Tarifa, diretor da montagem) foi criado dentro da Escola de Arte Dramática na ECA – USP como parte do nosso estágio de formação. E tanto a direção do Tarifa quanto o trabalho da equipe que ele criou foram fundamentais. Jonathan Silva na composição, tornando nosso ato um musical brasileiro; William Guedes na direção musical trazendo a dissonância do nosso tempo histórico urbano e Erika Moura na direção de movimento, além do Luiz André Cherubini na orientação dos objetos, para citar alguns. Foram nove meses de ensaios intensos, adentrando a madrugada, imergindo no estudo de pensadores e pensadoras do nosso tempo (Hanna Arendt, Maria Rita Kehl, Larrossa, Paulo Freire e muitos outros). (…) O texto baseia-se na peça do teatro do absurdo do Ionesco intitulado Rinoceronte, falando em 1956 a respeito dos regimes totalitários e, em 2015, não pensávamos que teríamos pela frente a mesma questão, mas percebemos como o nosso tempo produzia, ao mesmo tempo que extinguia rinocerontes pela ganância, esta nova espécie chamada por nós de rinocerontes urbanos” e completa: “Estamos em grupo porque acreditamos que sonhando e debatendo em conjunto, caminhamos com passos mais firmes em direção à utopia.”
Há muito o que se escrever no que concerne à opulência de meditações que a peça provoca. Os próprios artistas são o espetáculo, por si só. O ponto intrínseco e imprescindível do texto é o toque nas feridas que todos trazemos no convívio em sociedade, ao passo que torna-se fio condutor para a cura, bem ali diante de todos nós. A peça permanece em quem a assiste, marca permanentemente, e alimenta o público enquanto o inunda com as inquietações que pertencem a todos.
Canto para Rinocerontes e Homens conta a história, como diria Paulo Freire, dos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam. (epígrafe da Pedagogia do Oprimido)

SERVIÇO
Canto para Rinocerontes e Homens
Teatro Popular João Caetano, aos sábados e domingos, às 19h até o dia 16 de fevereiro
Bilheteria abre às 17h30min – 50% dos ingressos disponíveis no Sympla online
RS30 inteira | R$ 15 meia

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