Pau que bate em Maria, não bate em Francisco

Por Anna Luiza Calixto

Pensando em possibilidades para principiar o ano de minha Coluna, tive um encontro com uma das lacunas que mais causam desconforto na nossa metade da população planetária, as mulheres: a impopularidade dos ícones femininos capazes de provocar impacto e, absolutamente, admiração não tão somente em seus pares, bem como em qualquer pessoa, por sua audácia, determinação, perspicácia e brilhantismo inovadores no contexto repressor em que performaram socialmente.
Debruçada sobre esta perspectiva, passei a estudar incontinentemente a linha do tempo feminina no campo da literatura, da cultura, das artes, do esporte e da política contemporânea. Deparei-me com incontáveis silhuetas femininas que, há tempos, figuram nos mais plurais segmentos da vida pública e tiveram seus legados apagados dos livros de história; seus monumentos – literalmente – derrubados e suas ideias desapropriadas e descaracterizadas no decorrer da construção e consolidação do patriarcado como estrutura indeclinável do eixo que move o mundo como o conhecemos.
Passando por cada uma de tais histórias, conheci um novo processo de formação identitária da mulher revolucionária como uma rebelde, uma bruxa, a fêmea subversiva que recusa-se a fazer parte da sequência histórica que, em uma trama perversa, supostamente protegeria as próprias personagens responsáveis por esta rebelião anunciada. Personagens de carne, osso e coragem para lutar como Hipátia, matemática e filósofa do antigo Egito que assina a invenção do astrolábio, dando o pontapé inicial no cálculo da humanidade sobre a posição do sol, da lua e das estrelas. Como Maud Stevens, artista circense norte americana que, em meados de 1.800, viajava pelo mundo como contorcionista com o corpo coberto por tatuagens. Também como YaaAsantewaa, rainha guerreira de Gana, país africano, que encontrou os exércitos locais – compostos exclusivamente por homens – abrindo mão da batalha contra os colonizadores ingleses por medo. Diante de tais circunstâncias, Yaa liderou um mutirão de cinco mil pessoas contra os bem equipados soldados britânicos. Como Policarpa Salavarrieta, espiã revolucionária que trabalhou inarredavelmente pela libertação da Colômbia das mãos do cruel e autoritário governo espanhol. Ou Wilma Rudolph, atleta que quebrou três recordes mundiais nas Olimpíadas de 1960 após uma dura recuperação do diagnóstico de poliomielite. Como Hatshepsut, mulher que governou o Egito por vinte e cinco anos – muito antes da era de Cleópatra – e reinou por mais tempo (e com mais êxito) do que qualquer outro faraó em toda a linha do tempo egípcia. Embora ou em razão de todo o seu sucesso, a rainha teve seu nome removido dos registros históricos locais e os monumentos que a homenageavam destruídos, em uma tentativa óbvia de silenciamento e desapropriação do imprescindível papel de destaque desempenhado por ela. Como MichaelaDeprince, bailarina negra nascida em Serra Leoa que cresceu em um abrigo sendo constantemente nomeada como filha do diabo pela aparência de sua pele, diagnosticada com vitiligo, infecção cutânea que causava manchas brancas em seu pescoço e peito. Subvertendo a perversidade deste discurso preconceituoso e absurdo (o que vem a dar no mesmo) a jovem foi adotada, devotou-se às aulas de balé e hoje é uma das bailarinas do Balé Nacional Holandês.
Eu poderia aqui escrever sobre Cora Coralina, BalkissaChaibou, Evita Perón, Frida Kahlo, YusraMardini, Maria SibyllaMeian, NellieBly, Tama de Lempicka, Mae Jemison, Maria Montessori, Nancy Wake e tantas, tantas outras mulheres extraordinárias que passaram a inspirar minha caminhada como ativista por direitos humanos dos públicos mais vulneráveis. Na contramão deste movimento, estas personagens não figuram entre nosso repertório sócio cultural e precisam ser buscadas, uma vez que as tentativas de apagamento histórico a rigor persistem.
Para identificar-se como mais uma entre tantas vítimas, alvo deste processo de reversão cultural, basta se propor a um exercício de reflexão: pense em três dos maiores pintores que você conhece; os três maiores compositores; os três maiores diretores; os três maiores autores; os três maiores políticos. Dentre estes nomes, quantas mulheres você listou? Considerando que compomos metade da população mundial, devemos figurar em pelo menos metade dos itens lembrados. Se este não é o resultado inicial desta reflexão, convido ao leitor e, principalmente, à leitora para pesquisar a respeito de tantos ícones femininos e feministas responsáveis por inovações cientificas; marcos históricos; obras literárias e cinematográficas; canções populares. Ler a respeito e se apropriar destas histórias torna a emancipação feminina uma narrativa factível e não a fábula como tantas vezes é lembrada pelo imaginário popular, escrevendo por cima das linhas rasuradas pelo machismo e pelo tempo.
Precisamos, absoluta e primordialmente, educar nossas meninas para que se sintam representadas na história de seu país e de sua cultura. Provocar identificação e abertura de espaços para o seu protagonismo, uma vez que elas passam a conhecer personalidades ancestrais que abriram este caminho que, portanto, não é apenas possível, mas real e está diante de todas elas, a passos de distância. Partindo desta prática, escreveremos novas histórias que não serãomais apagadas pois estaremos aqui para lembra-las coletivamente, como símbolo do movimento cuja substância permanecerá viva em cada uma de nós enquanto usarmos nossa voz e nossos corpos como ferramentas poderosas de resistência. Prefaciando as Colunas de mais um ciclo, o que poderia ser melhor do que inspiração? E inspiração esta oriunda de nossos pares pois, como escreve a ativista e política mexicana Eufrosina Cruz: “Quando uma mulher decide mudar, tudo muda em volta dela.” Mudemos para que, assim, o mundo mude conosco.

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