Culpa: substantivo feminino

Quem não denuncia, também violenta. A cada hora, seis mulheres como nós. Qualquer uma está a um passo da violência e a outro da denúncia. Culpa é um substantivo feminino. Mas luta também é.

Feminicídio: foi morta porque é mulher. Foi atacada por ser mulher. Foi violada por ser mulher. Foi reduzida por ser mulher. Foi sentenciada por ser mulher. Não foi violentada porque o convidou para sua casa no primeiro encontro. Não ficou inconsciente porque era mais velha do que o agressor com quem mantinha um relacionamento. Não, não acordou sendo esmurrada porque o relacionamento era virtual. Não foi espancada e torturada por quatro horas porque convidou um homem para dormir ao seu lado. Não.
Foi brutalmente atacada por ser mulher. A quem rejeita tal pensamento, não hipótese, mas fato, convido a manter os olhos atentos para a Lei 13.104/2015, que altera o artigo 21 do Decreto Lei n°2848/40. Lei do Feminicídio. “Crime contra a mulher por razões da condição do sexo feminino.” – crime contra a mulher, com característica de extermínio, por ser mulher.
Quando, durante esta semana você abriu o jornal, leu em um veículo de informação da Internet ou assistiu através da televisão a notícia sobre a tentativa de feminicídio contra a empresária Elaine Caparroz, violentada durante quatro horas em seu apartamento no Rio de Janeiro por Vinícius Batista Serra, provavelmente ouviu – ou pensou – sobre a diferença de idade entre ambos, que mantinham um relacionamento virtual há oito meses. Certamente escutou algo parecido com: “No primeiro encontro ela convida uma pessoa que não conhece pessoalmente para a sua casa?”. Talvez tenha pensado: “Que história estranha, será que foi tudo isto? Quatro horas apanhando e não pediu ajuda?”. Ou, ainda, como pude escutar em um noticiário de casos sangrentos e absurdos como este: “O que mais me choca mediante o crime é que ainda não compreendi o motivo que a mulher deu para que ele fizesse isto. Ela parecia muito solícita a tudo o que ele propôs.” Feminicídio – seja tentativa ou assassinato – quer dizer que o motivo, senhor jornalista, é que ela é mulher. Nada do que ela pudesse ter feito seria um motivo para que Vinícius cometesse a atrocidade premeditada que aconteceu no último final de semana.
O que mais deveria chocar ao senhor seria a brutalidade do agressor que quebrou os ossos faciais de Elaine, que precisará que reconstrução do rosto, pois foi desfigurada completamente, além de ter sido mordida nos braços, ter ficado inconsciente e ter se arrastado pelo apartamento, marcado de violência, pedindo um socorro que veio quando Vinicius fugia, descendo os andares do prédio, quando o porteiro foi acionado, trancou a saída até que ele – que entrou no prédio utilizando um nome falso (o que comprova a premeditação do crime) foi preso em flagrante, enquanto a empresária era socorrida sem ter mesmo certeza do que estava acontecendo, tamanho o choque psicológico, perpetuado em marcas irrecuperáveis.
“Tomei uma taça de vinho, fui dormir com ela e acordei em surto” – afirma Vinícius, visivelmente em busca de uma pena mais branda. O que pena nenhuma é capaz de ressarcir é a vida de Elaine, que se questiona em frente a amigos sobre a sua “possível” culpa sobre o caso, envergonhada por sua condição e arrependida pelo relacionamento no qual estava envolvida. O que precisa ser dito à Elaine, ao jornalista, à você e eu é que a culpa da violência nunca é da violentada.
O nome que precisa ser ouvido, repetido e ressoado é o de Vinícius Batista Serra. A notícia deve dar enfoque para além da trama insípida de um relacionamento virtual ou, no frequente e pior caso, do questionamento da postura e da moral da vítima. O que precisa ser exposto e colocado em cartas de juízo é que Vinicius, antes de completar trinta anos, já havia apresentado comportamento agressivo e deplorável contra dois familiares próximos, dentre eles um jovem portador de deficiência física, agredido com golpes de jiujitsu por conta de uma quantia de 1,2 mil reais “desaparecidos”, que haviam sido guardados em medida de segurança pela mãe de ambos.
O que precisa ser dito é que o agressor estava prestes a se formar no Curso de Direito e que todo o senso de justiça e defesa da moral aplicados na disciplina não foram suficientes para deter sua crueldade inadmissível, responsável por levá-lo à prisão preventiva.
Para além da violência que vive nos lares; nos relacionamentos; nos corpos; nos hospitais; nas Delegacias de Polícia; nas ruas e no transporte público, há a violência que vive no imaginário popular, que acusa, supõe, especula e aperta os dois principais gatilhos responsáveis pela persistência da estrutura machista: a naturalização da violência e a culpabilização da vítima. Falo do olhar perverso e tendencioso de quem lê tal atrocidade sob o prisma do julgamento da postura de Caparroz. Comentários tipicamente tecidos pelo fundamentalismo que coloca a sexualidade feminina em patamar pecaminoso e intocável, reprovando uma mulher livre para escolher de forma tão crítica que a sentencia pela violência que sofreu.
Feminicídio não se provoca, não se motiva. O único fator responsável por promover uma atrocidade como esta é a cultura patriarcal que submete mulheres diariamente à humilhação e dor, assim como leva telespectadores, ouvintes e leitores a questionar a moral da vítima antes mesmo de condenar a postura inaceitável e a brutalidade do agressor, único responsável pelo pesadelo que criou.
“Eu lembro de ter tido um flash da minha vizinha: ‘Elaine, Elaine, você viu como você está?’ e eu assim: ‘Não sei!” – relata Caparroz por áudio que descreve sua memória do episódio. Elaine não sabia, mas todos nós sabemos as marcas provocadas por Vitor e tantos outros monstros que se tornam números em estatísticas, dados impossíveis de justificar.
Eu sou Elaine, assim como sou Maria da Penha e cada uma das mulheres que sangram pela violência do machismo. Sou cada voz em desespero ao telefonar para o 180. Carrego o peso de cada uma destas dores mas não o peso da omissão por não estender a mão e denunciar. Quem não denuncia, também violenta. A cada hora, seis mulheres como nós. Qualquer uma está a um passo da violência e a outro da denúncia. Culpa é um substantivo feminino. Mas luta também é.

Por Anna Luiza Calixto

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